Vivemos uma era paradoxal: nunca se falou tanto em longevidade e autocuidado, e nunca se temeu tanto o envelhecer. As redes sociais converteram-se em palcos de uma teatralidade narcísica em que homens e mulheres, em idades outrora consagradas à prudência, à serenidade e à contemplação, insistem em rivalizar com a juventude no culto da aparência. O que outrora era símbolo de experiência, hoje é, não raro, disfarçado pelos filtros digitais, cirurgias estéticas e vestes que afrontam a própria dignidade do tempo. É neste contexto que a leitura de DeSenectute, de Marco Túlio Cícero, revela-se não apenas oportuna, mas quase profética, um chamado à restauração da harmonia entre o Chronos que passa e a alma que permanece.
Escrito em 44 a.C., o diálogo De Senectute apresenta o velho Catão como figura paradigmática da sabedoria que não se resigna à decadência, mas a transforma em virtude. Para Cícero, a velhice é o coroamento da existência racional, e não sua ruína. Ele refuta, com argúcia e serenidade, os quatro males que o senso comum atribui à idade avançada: o afastamento das atividades públicas, a debilidade corporal, a perda dos prazeres e a proximidade da morte. Em lugar da lamentação, propõe uma ética da aceitação e do equilíbrio, uma filosofia da continuidade que transcende o conflito de gerações.
No primeiro ponto, ao tratar da utilidade social da velhice, Cícero enaltece a experiência como força invisível que sustenta a coletividade. “O conselho é mais necessário que a força”. O velho, liberto das urgências passionais, torna-se o guardião da prudência e o depositário da memória moral de um povo. Nessa perspectiva, o tempo não o reduz: o enobrece.
A sociedade contemporânea, porém, parece inverter essa hierarquia moral. A sabedoria dá lugar à performance; a prudência, ao exibicionismo. Muitos idosos, seduzidos pela lógica digital da visibilidade, já não se veem como mestres do tempo, mas como prisioneiros de um espelho que lhes devolve uma juventude ilusória.
No que tange à fragilidade corporal, Cícero reconhece o inevitável declínio físico, mas vê nele ocasião de cultivo interior. A temperança e o exercício da mente, afirma, compensam as perdas do corpo. “O exercício da mente deve durar até o último suspiro.”
A velhice, ao invés de ser vivida com dignidade, é frequentemente combatida como um inimigo estético. Academias, clínicas e filtros digitais tornaram-se templos modernos do autoengano. O corpo, que deveria ser o templo da alma, converteu-se em vitrine de vaidades e o resultado é uma velhice que se exibe, mas não se reconhece.
No que concerne à privação dos prazeres, Cícero propõe uma leitura filosófica da libertação. O afastamento das paixões não é empobrecimento, mas depuração: a alma, já amadurecida, conquista domínio sobre os impulsos. Essa visão ressoa na filosofia de SørenKierkegaard, para quem a existência humana evolui por estádios, do estético ao ético, e deste ao religioso. O homem estético busca o prazer, o efêmero, o imediato; o homem ético busca a responsabilidade e o dever; o homem religioso alcança a reconciliação com o eterno. A velhice, nessa ótica, deveria corresponder à superação da fase estética e à maturação do espírito. Contudo, observa-se, nas redes sociais, uma inversão irônica: Um naco (fragmento) razoável de pessoas de idade avançada parece regredir ao estágio estético, buscando nas selfies, nos gestos e nas indumentárias provocantes uma juventude perdida, não pela biologia, mas pela ausência de autoconhecimento.
Essa regressão espiritual manifesta-se como uma recusa simbólica do tempo, uma tentativa fútil de suspender o Chronos e de perpetuar a efemeridade. Esquecem-se, entretanto, de que o tempo, para os gregos, era não apenas destruição, mas também mestra de sabedoria. O Chronos devora, sim, mas o Kairós, o tempo oportuno, revela o instante pleno, o momento em que o ser humano reconhece sua finitude e, portanto, sua dignidade. Cícero compreendeu isso com clareza: a juventude é a promessa da vida; a velhice, sua realização.
O quarto e mais elevado ponto da reflexão ciceroniana trata da morte como continuidade natural. “Se a alma é imortal, a velhice é o porto da vida; se não é, ainda assim é o fim natural de um longo caminho.” A serenidade diante da morte é o ápice da sabedoria, o instante em que o homem compreende que viver bem é aprender a morrer.
A recusa moderna do envelhecer é, em última instância, o medo disfarçado da morte, medo que se mascara com cosméticos, cirurgias e poses ensaiadas. Essa negação não é apenas estética, mas metafísica: é a recusa da própria condição humana.
Cícero, ao contrário, ensina-nos que aceitar o tempo é reconciliar-se com a natureza. A velhice é o espelho da ordem cósmica, o momento em que o homem, liberto das ilusões da força e do prazer, se integra ao ritmo do universo. Sua mensagem é de profunda atualidade: enquanto a modernidade exalta a imagem, ele exalta o espírito; enquanto a sociedade contemporânea teme o declínio, ele celebra a plenitude.
Em suma, De Senectute é mais que um tratado sobre o envelhecimento, é um manifesto pela harmonia entre gerações e pela dignificação do tempo. A juventude precisa ouvir os idosos, e os idosos precisam reencontrar em si o sentido de mestre e não de competidor.
Em um século em que a vaidade parece ter suplantado a virtude, talvez seja necessário, como Cícero e Kierkegaard, redescobrir que a verdadeira beleza não se mede em anos, mas em sabedoria. O corpo se curva, o rosto se enruga, mas o espírito, quando disciplinado pela razão e pela temperança, permanece ereto diante da eternidade.
REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS
CÍCERO, Marco Túlio. De Senectute (Da Velhice). Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Martin Claret, 2004.
KIERKEGAARD, Søren. Ou… Ou: Um fragmento de vida. Trad. Álvaro Lins. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
KIERKEGAARD, Søren. Temor e Tremor. Trad. Adolfo Casais Monteiro. Lisboa: Edições 70, 1986.
HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.
Prof. Weslley Danny – Doutor e Mestre, graduado em Filosofia, História, Letras, Biologia e Enfermagem. No que tange o segmento humanístico compila pós-graduações nas seguintes áreas: (ciência política), (filosofia, sociologia e ciências sociais), (ética e filosofia política) e (história e antropologia).