Francisco Xavier M. de Castro*
É inegável o prejuízo que foi imposto ao crime organizado com os resultados da Operação Contenção, ocorrida nos complexos da Penha e do Alemão na última semana. O conjunto das 117 mortes e 113 prisões de narcoterroristas, além da apreensão de quase cem fuzis numa única operação, infringiu um golpe nunca antes sentido pela facção criminosa mais antiga do país.
Apesar do comando vermelho (CV) continuar resiliente e atuante em outras comunidades do Rio de Janeiro (e em 25 estados brasileiros), bons especialistas garantem que alguns efeitos da operação deverão ser sentidos nas próximas semanas. É o caso de uma previsível e aguardada redução dos homicídios decorrentes da disputa por territórios. Com a baixa de mais de uma centena de “soldados” do CV, a recomposição desse contingente poderá levar um tempo ainda não determinado, o que implicará, em tese, na diminuição da guerra entre as facções, pelo menos momentaneamente. Também se estima que haja uma significativa redução de roubos e furtos nas imediações dos referidos complexos (Alemão e Penha), assim como a diminuição no roubo de cargas nas rodovias cariocas. Em verdade, trata-se mais de uma esperança, do que de uma assertiva.
Contudo, há outro efeito decorrente da operação que pode estar prestes a recair sobre o CV, principalmente no nível representativo e expansionista da facção: o início de uma forte instabilidade dentro de seus comandos regionais, ou seja, nas representações da facção em outros estados. Há informações de que um grave desalinhamento interno já está sendo verifico no Amazonas, estado que detém uma localização altamente estratégica no contexto da geopolítica do narcotráfico. A razão para isso? A morte de alguns integrantes do CV amazonense, que se encontravam abrigados no complexo do Alemão durante a operação, iniciou uma séria dissidência dentro do chamado “conselho dos 13”, a instância responsável pelo comando das ações do CV naquele estado. Essa ruptura regional é dada como certa e ocasionará uma inevitável alteração na governança do fluxo da droga que vem da Colômbia através da conhecida “rota do Solimões”. Essa rota, que se estende por 5.786 quilômetros, desde a tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru, é a responsável por trazer a cocaína para o mercado nacional, e por levá-la ao mercado consumidor europeu, a partir de alguns portos, como o de Belém. Caso o “conselho dos 13” do CV amazonense não consiga gerenciar a crise interna de modo satisfatório, a previsão do tempo aponta para uma tempestade sangrenta pela disputa do poder, o que poderá reconfigurar a dinâmica da rota do tráfico na Amazônia.
E o que Roraima tem a ver com tudo isso?
Uma ruptura interna do CV amazonense ocasionará uma compartimentação ou uma disputa pela rota do Solimões, podendo culminar com uma série de episódios comuns a um processo de cisão: guerra declarada, assassinatos e roubos das cargas são os eventos aguardados. Para escapar dessas intempéries, os narcotraficantes poderão optar pelo escoamento da droga por outras vias, menos arriscadas, apesar de mais distantes. Uma dessas vias é o rio Branco, em Roraima, que pode ser acessado a partir do estuário do rio Negro (também trafegado pelo CV no escoamento da cocaína) e permite que se chegue até o município de Caracaraí, possibilitando que a droga colombiana seja encaminhada à capital amazonense pelo modal rodoviário, através da BR-174. Essa possibilidade já foi explorada, em 2024, por narcotraficantes, como uma alternativa de escapar da fiscalização policial demandada pela “Base Arpão 2”, instalada no rio Negro; contudo, o carregamento da droga, à época, foi apreendido pela Força Integrada de Combate ao Crime Organizado de Roraima (FICCO-RR). Complementarmente, a desativação da operação de fiscalização permanente na divisa de Roraima com o Amazonas (Posto Fiscal do Jundiá), outrora mantida em tempo integral e de forma conjunta pela Polícia Federal, Polícia Militar e Polícia Civil, também representa um reforço para a escolha dessa rota alternativa de envio da droga para Manaus.
Além dessa possibilidade, há outro fator geopolítico capaz de impulsionar a rota internacional da cocaína pelo território roraimense: o bloqueio marítimo realizado pelos EUA no Caribe, que já afundou 10 supostas “narcoembarcações” venezuelanas em águas internacionais. Sob a tormenta americana, é possível que os cartéis de droga venezuelanos, como o Tren de Aragua e o Cartel de los Soles, reprogramem suas remessas de cocaína e de ouro ilegal (outra grande fonte de receita dos cartéis venezuelanos) priorizando a fronteira terrestre com o Brasil, especialmente através de Pacaraima, a fim de que os ilícitos cheguem aos portos brasileiros que, finalmente, os conectará aos seus destinos finais. Novamente, um caminho mais longo, mas que não pode ser totalmente descartado.
Acrescida aos cenários descritos acima, a presença do crime organizado venezuelano em Roraima pode representar um ingrediente mortal para as possibilidades aventadas, diante do risco das alianças entre as facções no intuito compartilhado de tornar o território roraimense parte definitiva do itinerário da cocaína que entra no país. Esse cenário de potencial convergência de interesses entre facções brasileiras e venezuelanas representa um risco estratégico para a segurança pública em termos locais e nacional, o que pode transformar Roraima em corredor logístico tanto de drogas quanto de armas, com impacto direto na criminalidade violenta e no controle territorial chancelado pelo crime organizado.
Portanto, não faltam razões para que as autoridades de segurança do estado de Roraima se mostrem preocupadas, ou pelo menos atentas a esses possíveis cenários. Em termos de defesa e segurança pública, manter-se um passo a frente é uma premissa da qual dependerá a sobrevivência de um governo.
Um exercício necessário e urgente, em nível estratégico de uma política de estado, num momento em que a geopolítica nacional e internacional demanda análises e relatórios diários, é a utilização da inteligência estratégica para prospecção de todos os cenários possíveis e decorrentes dos eventos que tenham condições de impactar na dinâmica criminal no Estado de Roraima, proporcionando às instituições a antecedência necessária e as condições para o monitoramento e guarnecimento das possíveis rotas utilizadas pelo crime organizado transnacional.
Desconsiderar as dinâmicas internacionais, e seus potenciais desdobramentos, e desprezar a crise de segurança pública e de soberania que se escala no país é uma negligência que, em pouco tempo, poderá cobrar um preço alto demais aos governantes.
*Coronel PM da ativa e ex-Comandante Geral da Polícia Militar de Roraima
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