Cotidiano

Warao que resistem deixar antigo abrigo temem passar fome

Operação Acolhida deixará de fornecer café da manhã, almoço e janta na ocupação espontânea, e indígenas terão que se virar para se deslocar diariamente oito quilômetros e meio para conseguir comida em novo abrigo

Líderes indígenas venezuelanos Warao que resistem ficar no ginásio poliesportivo Ottomar de Sousa Pinto, no bairro Pintolândia, disseram estar com medo de passar fome após a Operação Acolhida avisá-los que deixará de fornecer alimentação no espaço a partir do próximo sábado (3). Atualmente, existem 318 pessoas no local, sendo 170 crianças.

Mesmo após desativar o local capaz de abrigar 640 pessoas – que funcionou como Abrigo Pintolândia de 2018 até março de 2022 – para transferir as instalações para o Abrigo Waraotuma a Tuaranoko (13 de Setembro), com capacidade para 1.500 ocupantes, a força-tarefa manteve o fornecimento de café, almoço, janta, energia e água encanada para os imigrantes na zona Oeste.

Mas se quiserem comida, eles terão que se virar ou caminhar diariamente oito quilômetros e meio para o novo abrigo. “Não queremos, porque não tem transporte, primeiramente. Segundo, para caminhar é difícil, para chegar lá tem uma hora. Aí buscar o alimento, por exemplo, se vai uma pessoa com criança para lá pode até sofrer um acidente”, disse Herme Mata, indígena Warao que é pai de dois brasileiros e quatro venezuelanos.


Aidamos Warao relatam preocupação com decisão da força-tarefa do Exército (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

“Nos preocupamos em acabar o alimento, que é primordial para a saúde. Nos preocupamos com os nossos filhos, os idosos. E não houve consulta aos povos, às lideranças sobre isso. Como também não houve consulta por parte da Vigilância Sanitária para entrar no abrigo e fazer a vistoria aqui”, criticou Euligio Baez, aidamo Warao, uma espécie de porta-voz na etnia.

Ele se refere ao relatório da Vigilância Sanitária estadual, feito em 14 de julho, que apontou que a ocupação espontânea do prédio público não possui condições de habitabilidade, higiene e limpeza adequadas, tampouco salubridade necessária e compatível com a dignidade humana, e que a situação “favorece em alto grau o risco de proliferação de vários tipos de doenças”.


Crianças são a maior preocupação relatada pelos líderes indígenas (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

O documento apontou sujeira pelos ambientes improvisados, com sinais de infestação de pragas e moscas, baratas e pombos, e que não há recipientes identificados, íntegros, de fácil higienização e em número e capacidade suficientes para acomodar os resíduos produzidos. “Por conta disso, nos deparamos com fezes humanas, restos de alimentos, marmitas e fraldas descartáveis espalhadas pelo chão”, completou o relatório.


Indígenas vivem em estruturas improvisadas no antigo Abrigo Pintolândia (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

Em março, centenas de indígenas deixaram o local, em uma operação de transferência repudiada pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR), que acusou militares do Exército Brasileiro de agredir os Warao. A Operação Acolhida disse não compactuar com atos de violência (leia a nota completa ao final da reportagem).

A Folha teve acesso ao ofício do coordenador da força-tarefa, datado de 6 de maio. Nele, o general Sérgio Schwingel informa ao governo estadual, proprietário do espaço, que encerrará os serviços de proteção, segurança, moradia, saúde, atividades sociais e educativas da comunidade que permaneceu no local – o que foi feito em junho, segundo informou a força-tarefa à reportagem.

Em meio a isso, há o temor dos indígenas deixarem o ginásio a qualquer momento. Os aidamos explicaram à Folha que resistem em ficar no antigo Abrigo Pintolândia, cujo local batizaram de Comunidade Indígena Jakera Ine, pela história que construíram no espaço, por ele ser próximo de unidades de saúde e escolas – ao contrário do abrigo do 13 de Setembro -, pelo tamanho do perímetro para as crianças brincarem e pela autonomia que a etnia possui por lá.

“Não queremos ir para o abrigo [Waraotuma a Tuaranoko], queremos viver uma vida normal, de dignidade, uma casa, um terreno para plantar, essa é a nossa vida, não dirigida por instituições, não queremos, estamos em abrigo, não queremos se condenados em abrigo […]. Violaram nosso direito, nossos costumes tradicionais”, completou Baez, que disse que desde que a organização do abrigo, os Warao não foram consultados previamente sobre como queriam o espaço, o que é um direito previsto na Convenção 169, tratado da Organização Internacional do Trabalho (OIT) do qual o Brasil é signatário.

“Por meio do Exército, estão discriminando os filhos brasileiros. Quando filho nasce aqui, praticamente pais se tornam brasileiros”, criticou o aidamo Warao, Antonio Centeno.

Herme Mata, por sua vez, explica que não quer ir ao abrigo oito quilômetros e meio distante pela falta de sombras para as crianças brincarem. “De dia tem muito calor, criança não brinca. Aqui é melhor”, disse.

Anulfo Gonzalez, aidamo Warao, endossou as falas, citou que houve vários episódios de violência por parte de militares do Exército enquanto controlavam o abrigo e acrescentou uma percepção histórica sobre a condição dos indígenas na América Latina ao defender que não são imigrantes, tampouco invasores. “Não queremos ser manipulados, ser como escravos praticamente”, disse sobre o tratamento de acolhida adotado pelo Exército.


Situação atual do local onde vivem os indígenas Warao venezuelanos (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

Para ajudar na própria sobrevivência, a maioria dos homens da ocupação espontânea trabalham com a reciclagem de lixo, enquanto as mulheres produzem artigos artesanais da etnia e vendem no mesmo local.

É o caso da aidamo Yurkelini Marín, que reclamou que a alimentação da Operação Acolhida chega com horas de atraso ao antigo abrigo. “Café da manhã chega às 9h. O almoço chega 14h. E a janta às 20h”, disse.

Além disso, a comunidade recebe doações de alimentos, como a que foi deixada por um anônimo na porta do ginásio, interrompendo a entrevista com Yurkelini para esta reportagem. Dezenas de adultos e crianças correram afoitos para disputar os mistos de queijo e presunto embrulhados e dentro de duas caixas médias de papelão. Os menos ansiosos formaram fila para obter a alimentação.

Procurada, a Operação Acolhida confirmou que a entrega das refeições será transferida para o Abrigo Waraotuma a Tuaranoko, lembrou que o novo abrigo “atende os padrões humanitários internacionais de abrigamento e salubridade, além de um maior espaço comunitário e melhores condições de estadia”, e que a força-tarefa “tem como pilares a legalidade, a legitimidade e o respeito aos direitos humanos, jamais compactuando com qualquer tipo de violência”.

Além disso, a Acolhida disse ter se reunido com as lideranças indígenas da ocupação para “esclarecer as consequências da inspeção sanitária estadual” feita pela Vigilância Sanitária e que a entrega das refeições passaria a ser realizada no abrigo indígena do 13 de Setembro. “Esta Força-Tarefa também informou que permanece aberta a possibilidade de abrigamento das famílias de Pintolândia no Abrigo Waraotuma a Tuaranoko, para aquelas que desejarem, de modo a salvaguardar a dignidade humana desse contingente vulnerável”, finalizou.

O governo estadual também foi questionado, mas não deixou claro se vai ou quando vai desocupar o espaço onde vivem os indígenas. “O Governo do Estado reforça que continuará à disposição para contribuir com o trabalho de assistência a esse público”, disse, em nota que pode ser lida na íntegra ao final da reportagem.

Nota completa da Operação Acolhida

“A Força-Tarefa Logística Humanitária – Operação Acolhida informa que, a partir do dia 3 de setembro de 2022, a entrega de refeições (café, almoço e jantar) para as pessoas da ocupação espontânea de Pintolândia (Ginásio Poliesportivo Ottomar de Souza Pinto) será transferida para as instalações do Abrigo Waraotuma a Tuaranoko.

Em novembro de 2021, a Força-Tarefa iniciou um processo de reestruturação dos abrigos indígenas, com a consulta e transferência voluntária de cerca de 1.200 migrantes, dos abrigos Tancredo Neves, Nova Canaã e Pintolândia para o abrigo Waraotuma a Tuaranoko, com capacidade para 1.500 beneficiários. O novo abrigo atende os padrões humanitários internacionais de abrigamento e salubridade, além de um maior espaço comunitário e melhores condições de estadia.

Ressalta-se que a atuação da Força-Tarefa tem como pilares a legalidade, a legitimidade e o respeito aos direitos humanos, jamais compactuando com qualquer tipo de violência. Desse modo, somente foi efetivada a transferência para o abrigo Waraotuma a Tuaronoko daqueles que desejaram ir para o novo local.

Após a conclusão do processo de consulta e diálogo com as lideranças locais, dos 1.200 migrantes indígenas previstos para a transferência, cerca de 200 pessoas do abrigo Pintolândia decidiram permanecer naquele local, mesmo cientes que Ginásio deixaria de ser um abrigo, tornando-se uma ocupação espontânea. Assim, em junho deste ano, a Operação Acolhida e o Governo do Estado de Roraima realizaram o distrato de cessão de uso não onerosa do espaço do Pintolândia, e, em consequência, foram encerrados os serviços de proteção, segurança, moradia e saúde.

No entanto, a fim de amenizar a situação das famílias indígenas remanescentes em Pintolândia, a Força-Tarefa Logística Humanitária permaneceu entregando, diariamente e de forma individualizada, o café, almoço e jantar para cerca de 200 pessoas. Da mesma forma, algumas agências parceiras e voluntários da sociedade civil permaneceram prestando apoio básico àquela comunidade indígena.

Em 15 de julho de 2022, a Vigilância Sanitária Estadual informou à Força-Tarefa que a ocupação espontânea do Ginásio Poliesportivo Ottomar de Souza Pinto “não apresenta as condições de habitabilidade, higiene e limpeza adequadas, tampouco a salubridade necessária e compatível com a dignidade humana preconizado no art. 1º, inciso III, da Constituição de 1988” (Rel. nº 5562674-SEI/GRR, p. 2).

Diante de tal condição de insalubridade, a Força-Tarefa realizou, em 18 de agosto de 2022, uma reunião com as lideranças indígenas da ocupação espontânea de Pintolândia, a fim de esclarecer as consequências da inspeção sanitária estadual e informou que, em 15 dias, a contar desta quinta-feira, 19 de agosto de 2022, a entrega de alimentação (marmitas) para as pessoas da ocupação de Pintolândia passará a ser realizada nas instalações do Abrigo Indígena Waraotuma a Tuaranoko.

Esta Força-Tarefa também informou que permanece aberta a possibilidade de abrigamento das famílias de Pintolândia no Abrigo Waraotuma a Tuaranoko, para aquelas que desejarem, de modo a salvaguardar a dignidade humana desse contingente vulnerável.”

Nota completa do Governo de Roraima

“O Governo do Estado informa que sempre prestou o auxílio necessário à Força Tarefa Humanitária, apoiando a Operação Acolhida quando solicitado, no que se refere ao atendimento e assistência aos imigrantes, incluindo os indígenas.

Ressalta que durante o diálogo mantido com a Força Tarefa, e ainda por meio do contato com a Operação Acolhida foi informado de que o trabalho de atenção foi concentrado no abrigo central mantido pela Operação Acolhida, localizado no bairro 13 de setembro, em virtude do local possuir as condições necessárias e adequadas para a prestação dos serviços, mas que de forma voluntária alguns preferiram não ser atendidos no abrigo.

O Governo do Estado reforça que continuará à disposição para contribuir com o trabalho de assistência a esse público.”