JESSÉ SOUZA

‘Caso France’ despertou zero comoção e deve se tornar tão somente uma estatística

Muito provavelmente, o feminícídio de France Araújo Abreu, de 26 anos, se tornará apenas “mais um caso” (Foto: Facebook/Reprodução)

Enquanto as vozes mal pararam de ecoar sobre o “caso Julieta”, a venezuelana cicloviajante e artista circense brutalmente assassinada em Presidente Figueiredo (AM), uma jovem roraimense foi covardemente executada com um tiro no peito no Município de Bonfim, na fronteira com a República da Guiana, a Leste do Estado. France Araújo Abreu, de 26 anos, foi morta pelo ex-companheiro que não aceitava a separação. O energúmeno ainda acertou outro tiro no braço da jovem.

Trata-se de um crime igualmente repugnante, pois a jovem estava sentada ao lado da mãe, na calçada em frente da residência da família, em uma cena típica de quem está em um momento de tranquilidade e paz entre os seus, cuja realidade foi rompida violentamente pela ação animalesca de um elemento covarde, frio e calculista, assim como muitos homens agem contra mulheres que decidem dar um basta no relacionamento afetivo.

Enquanto o assassinato foi tratado apenas como “mais um crime” na crônica policial diária da imprensa, as mesmas vozes que protestaram altivamente no “caso Julieta” nem tiveram tempo de respirar para se indignar com o “caso France”. E certamente a sociedade nem sabe o que fazer porque a violência contra a mulher ganhou proporções alarmantes e os atores e atrizes sociais estão igualmente atônitos, enquanto falta vontade política por parte das autoridades em todos os níveis.

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Não é simples. As instituições até tentam, a exemplo a iniciativa do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), em parceria da Coordenação Estadual de Violência Doméstica (Cevid) do  Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR), que instituiu o Observatório da Violência contra a Mulher com a finalidade de mapear o fenômeno da violência de gênero. Mas atualmente não se ouviu mais falar da iniciativa.

Quase nada irá mudar dentro dessa realidade alarmante se não houver uma vontade política coletiva a exemplo do que ocorreu na Espanha, onde o famoso e milionário jogador de futebol Daniel continua preso sob acusação de estupro contra uma mulher durante uma noitada na boate. Por lá, não se trata apenas da lei que diz que “não é não”, já que apenas o “sim é sim” – inclusive, no Brasil, a “Lei Não é Não” acabou de ser sancionada.

Na Espanha, não foi somente uma lei pioneira contra a violência de gênero. Houve uma mobilização geral, com a criação de tribunais especializados, somada com a extensa cobertura da imprensa nos casos de violência contra a mulher. E não foi algo novo. Desde o início da década de 2000 aquele país se tornou um dos mais destacados na luta contra o feminicídio, que é o assassinato de mulheres motivado por violência doméstica ou discriminação.

Uma mobilização social forçou o Parlamento espanhol a aprovar, por unanimidade, no ano de 2004, a lei de “proteção integral contra a violência de gênero”, envolvendo todos os aspectos da problemática (social, educativa, penal). Lá existe um movimento feminista ativo e influente, apoiado pela sociedade civil após o fim da ditadura franquista.

Além disso, cem tribunais e uma promotoria especializada foram criados. E um promotor pode processar um agressor sem uma denúncia de sua parceira. A primeira apresentação do acusado perante o juiz deve ocorrer dentro das 72 horas posteriores à detenção do suspeito. As vítimas têm assistência jurídica gratuita. Os magistrados receberam treinamento para se adaptar à especificidade dos crimes.

Um pacto do Estado sobre violência de gênero foi aprovado em 2017, que prevê um orçamento de um bilhão de euros em cinco anos. E o papel da imprensa foi decisivo, pois os jornais começaram a divulgar não apenas estatísticas próprias sobre feminicídios na ausência de números confiáveis do governo, mas também a tratar a violência contra a mulher como um problema estrutural, e não apenas como casos isolados de polícia.

Vale destacar que a estatística é essencial para conhecer a verdadeira dimensão do problema. Em Roraima, que não é um caso isolado no país, não se sabe os verdadeiros números da violência contra a mulher, daí a importância da instituição do Observatório da Violência contra a Mulher. Os números mais atuais são referentes a 2022 e são divulgados por instituições nacionais, sob o silêncio das autoridades locais.

Talvez o “caso France” seja esquecido hoje mesmo, depois desse artigo, enquanto o “caso Juleita” ainda ecoe por mais algum tempo porque a imprensa nacional começou a se interessar pelo assunto. Se não houver uma mobilização social de todas as autoridades, instituições e movimentos sociais, como ocorreu na Espanha, a violência contra a mulher mudará apenas de nome, sendo tratado como “mais um caso”…

Na Espanha, jogador famoso vai para a tranca sem fiança. Aqui, no Brasil, basta ter uma influência qualquer para sequer ser incomodado pela polícia e pela Justiça. Os exemplos em Roraima são vários.

*Colunista

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