SEXTA CINÉFILA

Paris Is Burning: o palco, a rua e a vida que pulsava entre eles

Um retrato inesquecível da cultura ballroom e suas batalhas por reconhecimento

Paris Is Burning: o palco, a rua e a vida que pulsava entre eles

Mais uma edição da Sexta Cinéfila, nossa série dedicada a obras que desafiam convenções e ecoam através do tempo. Hoje, o destaque é Paris Is Burning (1990), documentário dirigido por Jennie Livingston que explora universo dos balls de Nova York, onde comunidades LGBTQIA+, majoritariamente negras e latinas, reinventavam identidades em meio à crise da AIDS e à marginalização social.

Lançado no limiar dos anos 1990, o filme chegou quando a epidemia de HIV devastava a comunidade queer e a cultura mainstream ignorava suas vozes. Paris Is Burning registrou a cena ballroom, com suas housesvoguing e categories  e a expôs como um ato político de sobrevivência e autoafirmação. Livingston, uma cineasta branca e lésbica, enfrentou críticas por sua posicionalidade, mas a obra permanece como um testemunho incontornável da interseção entre arte, resistência e vulnerabilidade.

A dualidade aqui é entre celebração e luto: enquanto o filme exalta a criatividade e a família escolhida das houses, ele também revela as violências estruturais que moldavam aquelas vidas.

Paris Is Burning é um estudo de observação participante traduzido para o cinema. Livingston passou sete anos filmando (1983-1990), usando uma câmera 16mm para capturar a textura crua dos balls e as entrevistas íntimas. A fotografia, muitas vezes iluminada por luzes de palco, cria um contraste entre glamour performático e a realidade das ruas.

Venus Xtravaganza, umas das personagens centrais da obra, ganhou um novo documentário só para retratar sua história (Foto: Reprodução/Internet)

trilha sonora mistura batidas eletrônicos e músicas da cena ballroom (como “Love Hangover” de Diana Ross), reforçando a ideia de que a música era literalmente o ritmo daquela revolução. A edição alterna entre performances e depoimentos francos, como os da icônica Pepper LaBeija (madrinha da House of LaBeija) ou de Venus Xtravaganza, com histórias sobre as tragédias e esperanças da comunidade trans.

Cenas icônicas:

  • O discurso de Dorian Corey sobre a origem do voguing (“é sobre imitar aqueles que te negam dignidade”).
  • A sequência da categoria “Realness”, onde performers demonstram como “passar” em sociedade como heterossexuais brancos — uma ironia dolorosa sobre assimilação.

Narrativa

A estrutura do filme é fragmentada, como os próprios balls: não há um protagonista único, mas um coro de vozes que constroem um retrato coletivo. Os temas centrais são:

  1. Identidade e performance: Os balls são espaços onde gênero, raça e classe são performados e desconstruídos. “Você pode ser quem quiser aqui”, diz um entrevistado.
  2. Família escolhida: As houses (LaBeija, Xtravaganza, etc.) funcionavam como redes de apoio em um mundo hostil.
  3. Violência estrutural: O filme não escamoteia a prostituição, o HIV, ou o assassinato de Venus Xtravaganza, lembrando que a fantasia tem um preço.

Simbologias:

  • As categories (como “Executive Realness”) são metáforas para o sonho americano inalcançável.
  • O corpo dançante vira um manifesto: cada dip e spin do voguing é um ato de ocupação de espaço.

Recepção

A diretora de Paris is Burning, Jennie Livingston (Foto: Reprodução/Internet)

Na estreia, o filme foi aclamado (prêmio no Sundance) mas também criticado por supostamente explorar seus personagens. Com o tempo, tornou-se um texto fundador para estudos queer e de performance. Sua influência é visível:

  • Madonna popularizou o voguing com “Vogue” (1990), mas foi Paris Is Burning que deu crédito à cultura originária.
  • Séries como Pose (2018) e Legendary (2020) são descendentes diretos de sua abordagem.
  • Referências acadêmicas: Teóricos como Judith Butler citam o filme para discutir performatividade de gênero.

“Esse filme é para quem…”

…quer entender como arte marginalizada vira cultura global, ou como resistência pode ser feita com glitter e altivez.

Se gostou, veja também:

  • The Queen (1968), documentário sobre um concurso drag pioneiro.
  • Tongues Untied (1989), sobre homens negros gays nos EUA.
  • Moonlight (2016), que dialoga com temas de masculinidade e comunidade.

Curiosidade: O título veio de um ball realizado em Paris em 1989 — um sonho de “queimar” as normas além de Nova York.

Paris Is Burning é um arquivo vivo de quem lutou para existir com beleza em um mundo que lhes negava humanidade. Como dizia Pepper LaBeija: “O ball é o único lugar onde você pode ser um superstar e ainda assim não ter onde dormir.” E é essa contradição que o cinema de Jennie Livingston eternizou.

Compartilhe via WhatsApp.
Compartilhe via Facebook.
Compartilhe via Threads.
Compartilhe via Telegram.
Compartilhe via Linkedin.