Ronildo Rodrigues dos Santos
Cientista Social
Na madrugada em que blindados e helicópteros invadiram os Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, o país testemunhou, mais uma vez, a supremacia da lógica da guerra sobre a da cidadania. A megaoperação, que já é considerada uma das mais letais da história do estado, mobilizou centenas de policiais, tanques e armas pesadas, e não políticas públicas, direitos ou diálogo. O Estado que deveria proteger, educar e emancipar, agiu como força de repressão e punição, consolidando a favela como território inimigo, e não como parte viva da cidade.
As imagens das câmeras corporais, requisitadas pelo Ministério Público, revelam o que os moradores já sabiam: uma cidade transformada em campo de batalha. Em meio a barricadas e trincheiras improvisadas, surgiu entre os próprios moradores a expressão “Muro do BOPE”, referência à linha de contenção montada por agentes especiais que, simbolicamente e fisicamente, separou “a cidade de bem” da “cidade sitiada”. Esse muro é mais do que concreto: é o retrato de um país que ergue fronteiras internas entre quem merece viver e quem deve sobreviver sob suspeita.
Nos dias seguintes, o horror veio à tona. Na mata que liga os dois complexos, moradores relataram ter encontrado dezenas de corpos, alguns removidos com as próprias mãos, em caminhões improvisados, enquanto o Estado se limitava a contabilizar “suspeitos abatidos”. Em imagens e depoimentos, fala-se em 60, 70 corpos retirados por moradores, muitos com sinais de execução. O governo afirma tratar-se de criminosos ligados ao Comando Vermelho. Contudo, defensores públicos e lideranças locais denunciam a presença de inocentes entre os mortos, atingidos em casa ou a caminho do trabalho.
Essa contradição é o centro do debate: quem são os mortos que o Estado não reconhece? A criminalização da pobreza, a seletividade penal e o racismo estrutural tornam invisível a dor de mães, filhos e vizinhos. A favela, mais uma vez, é descrita pela mídia como “zona de guerra”, quando na verdade é território de gente trabalhadora, negra e abandonada. E quando o Estado chega, chega armado, não com escola, saúde ou cultura.
A operação foi apresentada como “golpe contra o tráfico”, mas o resultado foi o reforço de uma lógica necropolítica, no sentido proposto por Achille Mbembe: o poder de decidir quem vive e quem morre. O que se vê nas vielas do Alemão e da Penha é o exercício cotidiano dessa política de morte, sustentada pela omissão histórica de políticas sociais e pelo racismo institucional. A favela, como disse Loïc Wacquant, continua sendo o “laboratório do Estado penal”, onde a pobreza é gerida com fuzis em vez de com políticas de inclusão.
Enquanto o governo divulga números de armas apreendidas, mais de cem, entre fuzis, pistolas e explosivos, os moradores contam os mortos. Enquanto a imprensa oficial fala em combate ao crime, famílias contam desaparecidos. Enquanto se ergue o “Muro do BOPE”, erguem-se também os muros simbólicos que dividem a cidade: de um lado, o medo; do outro, a indiferença.
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A pergunta que emerge é inevitável: essa operação garantiu segurança ou reafirmou o controle sobre corpos e territórios marginalizados? A cada incursão, a cada corpo anônimo, o Estado se distancia mais de sua função de garantir direitos. A política que chega com força é a da bala, e ela não protege, subjuga. A responsabilização é rara, a impunidade é regra, e o ciclo da violência se alimenta de si mesmo.
O impacto psicológico e social é devastador. Escolas fechadas, comércios interrompidos, crianças traumatizadas, famílias inteiras confinadas sob o som dos tiros. A vida cotidiana é suspensa, e a esperança, adiada. Quando a rotina de uma comunidade é ditada pelo calibre da arma, a democracia é apenas uma palavra distante.
Mas há resistências silenciosas. Organizações comunitárias, igrejas, coletivos e lideranças locais ainda insistem em levar cultura, afeto e solidariedade aonde o Estado só chega com repressão. São “gotas d’água” num oceano de descaso, mas são também o lembrete de que a vida insiste, mesmo sob cerco.
A “Operação Contenção” entrará na história como símbolo de um país que confunde presença do Estado com presença policial. E enquanto o Brasil continuar tratando suas periferias como campos de guerra, continuará perdendo a verdadeira batalha: a de reconstruir o sentido de nação.
Porque a arma, a polícia, é, ou deveria ser, para proteger, não para matar. Mas quando o Estado vira o gatilho e o povo a mira, o som do tiro deixa de ecoar apenas nas vielas: ele atravessa a consciência de um país inteiro que ainda não decidiu se quer ser democracia ou quartel.