OPINIÃO

Sistema Nacional de Cultura 02: A urgência de plantar um Sistema Municipal de Cultura com raízes populares em Boa Vista

Mestre Biriba – Jefferson Dias

Éder Rodrigues dos Santos

Implementar o Sistema Municipal de Cultura em Boa Vista (RR) é mais do que cumprir uma exigência técnica ou administrativa: é um gesto de compromisso com o pertencimento local, a memória e o futuro coletivo do povo, semeando um caminho mais justo, criativo e participativo. É reconhecer que a cultura pulsa no batuque dos tambores, na dança Parixara indígena, nas danças de roda, nos grafites da cidade, nos mestres de tradição oral, nos brincantes, artistas e fazedores (as) de sonhos.

É afirmar que cultura não é ornamento e nem gasto, mas fundamento — um direito humano consagrado no artigo 215 da Constituição Federal de 1988, que reconhece e protege as manifestações culturais de todos os brasileiros (as). É também seguir os caminhos traçados pela Lei nº 12.343/2010, que institui o Plano Nacional de Cultura, e pela construção do Sistema Nacional de Cultura (SNC), cuja base está no Decreto nº 8.639/2016, orientando os municípios a organizarem seus próprios sistemas em sintonia com os princípios da participação, diversidade, transparência e transversalidade das políticas públicas. É hora do poder público, os artistas e a sociedade civil caminharem juntos para estruturar políticas culturais permanentes em Boa Vista (RR).

O Sistema Municipal de Cultura (SMC) é a engrenagem que organiza e articula as ações culturais em uma cidade. Sua implantação se dá pela institucionalização de seis componentes principais: 1) O órgão gestor da cultura; 2) O Conselho Municipal de Políticas Culturais; 3) A Conferência Municipal de Cultura; 4) O Plano Municipal de Cultura; 5) O Fundo Municipal de Cultura e; 6) Sistema de indicadores da cultura. Esses instrumentos devem dialogar entre si e estar vivos na prática, ou seja, não podem existir apenas no papel, mas precisam ser ativados com recursos, com planejamento de longo prazo e com o envolvimento real da sociedade civil. O Conselho Municipal, por exemplo, deve obedecer à paridade entre representantes do poder público e da sociedade civil, com cadeiras destinadas a segmentos culturais diversos. Nenhum grupo que produz, vive ou defende a cultura pode ser deixado de fora. A adesão ao SNC exige esses instrumentos funcionando de forma articulada, com base na cooperação entre os entes federados.

Em Boa Vista (RR), os desafios são concretos: baixa institucionalização das políticas culturais, falta de recursos específicos, fragilidade na escuta pública e ausência de dados consolidados sobre a produção e diversidade cultural local. O SMC é o caminho para enfrentar estes desafios. Há uma imensa potência cultural em Boa Vista: artistas populares, coletivos urbanos, mestres da tradição, juventudes criativas, afros, indígenas e migrantes que moldam uma cultura viva, plural com seus territórios culturais. Todos estes grupos precisam estar dentro do processo de construção desse sistema.

O papel do poder público é estrutural. Cabe a ele garantir os meios legais, orçamentários e administrativos para a implantação do sistema, respeitando os princípios da gestão democrática da cultura e da descentralização. No entanto, sem a participação dos fazedores de cultura — aqueles que vivem “da” e “para” a arte — o sistema corre o risco de se tornar apenas “burocracia sem alma”.

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Outro fator fundamental é a paridade nas cadeiras dos conselhos. A legislação exige que ao menos 50% das cadeiras sejam ocupadas pela sociedade civil, garantindo a equidade na tomada de decisões. Os segmentos culturais devem ser contemplados de forma ampla e diversa, seja ele das artes visuais, artes cênicas, música, literatura, dança, culturas populares, tradições indígenas e afrodescendentes, audiovisual, patrimônio, hip hop, culturas emergentes, economia criativa, dentre outros.

De outra forma, o que se observa, é que há uma necessidade de articulação eficaz entre a gestão pública e os fazedores (as) de cultura. É preciso uma cultura política voltada à valorização dessa pauta como eixo estratégico e estruturante de desenvolvimento humano, social e econômico na capital. Além disso, é urgente fortalecer o diálogo entre o Executivo e o Legislativo Municipal. Os vereadores têm papel central nesse processo: precisam debater, aprovar e acompanhar leis que criem e sustentem os instrumentos do sistema, além de garantir dotação orçamentária própria para a cultura no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA), como determina a legislação federal.

Por isso, a criação de uma Frente Parlamentar em Defesa da Cultura de Boa Vista na Câmara também é importante nesse processo. A Frente deve congregar parlamentares interessados no avanço das políticas públicas em diálogo com as comissões internas da Casa, ouvindo a sociedade civil e os representantes do escritório do Ministério da Cultura (MinC), que está presente nos 26 estados. Entretanto, esta deve ser uma iniciativa do legislativo municipal. Iniciativa que será aplaudida pelos artistas e gestores (as) culturais.

Sem orçamento não há política pública que se sustente. O Fundo Municipal de Cultura, por exemplo, é o meio mais eficaz de apoiar projetos de artistas e coletivos locais com editais públicos, descentralizados e acessíveis. A ausência desse fundo compromete a sustentabilidade da produção cultural e perpetua a precariedade dos trabalhadores da cultura local, que continuam a viver de eventos pontuais, do pedido de balcão, de promessas passageiras ou da invisibilidade institucional.

É também dever da sociedade civil, especialmente dos artistas, mestres, produtores, técnicos, educadores e agentes culturais, ocupar os espaços de decisão, pressionar pelo cumprimento das leis, participar das conferências e do Conselho, levando suas vozes, suas causas e seus sonhos. A cultura precisa ser pensada a muitas mãos, com escuta e coragem para enfrentar as desigualdades históricas e fortalecer as identidades locais. Experiências exitosas em outras cidades de estados como Minas Gerais, Bahia, Espírito Santos e Ceará, demonstram que é possível construir políticas culturais estruturantes quando há compromisso entre poder público e sociedade. Nestes estados, os sistemas municipais de cultura têm promovido editais permanentes, formação continuada de agentes culturais, mapeamento da diversidade cultural e fortalecimento da economia criativa.

Implantar o Sistema Municipal de Cultura em Boa Vista é mais que um ato administrativo: é um gesto de coragem política e amor pelo povo. É entender que cultura é direito, é pertencimento, é cidadania. Que cada artista é um educador da sensibilidade. E que só com planejamento, escuta, representatividade e investimento poderemos construir uma cidade mais democrática, bela e plural. Que a cidade abrace seus artistas como quem reconhece seus guardiões da memória e da esperança. E que o Sistema Municipal de Cultura floresça como um campo fértil, pelo qual toda voz, todo canto e toda cor tenham lugar.

É chegada a hora de transformar esse desejo em realidade. Um município que respeita sua cultura é um território que educa, que cura, que acolhe e que projeta seu povo para o futuro. Implantar o Sistema Municipal de Cultura é, portanto, um ato de cidadania, de reconhecimento e de justiça social. É plantar políticas com raízes populares, para que delas floresçam arte, dignidade e liberdade.

Jefferson Dias – (Mestre Biriba), é mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Especialista em Filosofia da Religião (UERR), Pós-graduado em docência do nível Superior e Bacharel em Direito e Pós-graduando em Compliance, Governança Corporativa e ESG. Conselheiro Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado de Roraima – CONSEPIRR, Membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Africanidades e Minorias Sociais (UFRR), membro do Comitê Gestor da salvaguarda da Capoeira de Roraima e do Comitê Pró-Cultura Roraima, Membro da Federação Roraimense de Capoeira – FERRCAP, Mestre de Capoeira pelo Grupo Senzala e Fundador do projeto social Instituto Biriba – Educar para transformar. Foi professor de Direito Penal, Ética, Bioética e Legislação Trabalhista na instituição Ser Educacional. Articulista de jornal local, autor de obras autorais como livros, Cds, shows, documentários e outros. Atua nas seguintes áreas: Direitos Culturais, Direito Autoral, Patrimônio Cultural, Políticas Culturais, Economia Criativa, Liberdade Religiosa e Cultura Popular.

Éder Santos é Doutor e Mestre em Geografia Cultural, jornalista, sociólogo, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas da Universidade Federal de Rondônia; membro associado da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP); do Comitê Pró-Cultura Roraima. É presidente da Associação Roraimense de Cinemae Produção Audiovisual Independente (Arcine).

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