Éder Santos* e Mestre Biriba – Jefferson Dias**

O consumo cultural tem relações diretas com a cidadania, pois o acesso aos bens e serviços culturais é o ponto central dos direitos culturais. A realidade concreta do consumo de cultura e arte na cidade de Boa Vista (RR) demonstra que o poder público, possivelmente, esteja bem longe de promover a democratização desse processo e, como dito: da cidadania. Por meio de um olhar geossocial crítico e propositivo que demonstre a relação de espaços e o consumo de cultura, é possível observar que as ações do município de Boa Vista (RR) preocupam-se, na maioria das vezes, em atrair um “público seleto”, oferecendo atrativos de qualidade às “pessoas privilegiadas” em locais que “promovem a exclusão”. Exclusão social em espaços “instagramáveis”. Política cultural sem participação popular que deixa de atender com qualidade a: produção, a distribuição e o consumo cultural.

Além disso, o poder executivo municipal (e estadual) parece desconsiderar a zona oeste de Boa Vista quando o assunto é apoio aos fazedores (as) de cultura. A zona oeste agrega a maioria dos bairros da capital. Na referida zona geográfica, estão localizados 40, dos 56 bairros da cidade, que concentram 75% da população da capital, aproximadamente 250 mil pessoas. São bairros mais populosos e menos privilegiados, distantes do centro e dos grandes eventos. Um elefante na sala: todos sabem que ele está lá, mas ninguém quer tocar no assunto. Os bairros existem, mas o incentivo à cultura parece não chegar. Nestes bairros, há muita gente fazendo cultura e arte. Vale lembrar, por exemplo, que as cinco associações culturais indígenas do contexto urbano estão localizadas na zona oeste, assim como famílias quilombolas identificadas recentemente, sobrevivendo e resistindo com recursos próprios, com frágil infraestrutura institucional.

Neste sentido, é o Sistema Municipal de Cultura (SMC), que vai prever a implementação de instrumentos, como: o Conselho Municipal de Políticas Culturais, o Plano Municipal de Cultura, Sistema de indicadores e o Fundo de Cultura. Estes somados ao acompanhamento das ações do poder executivo pelo legislativo, reduziriam a possibilidade de elitizar as iniciativas do Município em nome do turismo e da cultura. Essa elitização é fato histórico que demonstra privilégios cultivados por oligarquias econômicas e políticos locais.

Processos de gentrificação em áreas como o bairro Caetano Filho, a demolição de prédios históricos, a centralização dos eventos culturais de grande porte são assuntos que facilmente seriam discutidos com profundidade com o SMC. Fala-se, por exemplo, nas propagandas oficiais de valorização de centros históricos e do nosso patrimônio material, mas na prática da vida concreta o que se revela é uma memória seletiva do que “deve ser” histórico. Uma amnésia patrimonial institucional conveniente. O SMC resolveria isso.

Pela aprovação do Sistema Municipal de Cultura em Boa Vista – O município de Boa Vista ainda não tem um SMC. Os debates para que o poder executivo ouça a sociedade civil e os segmentos culturais para construir coletivamente e democraticamente o SMC, como previsto em Lei, caminham lentamente. A votação na Câmara Municipal pode ocorrer ainda esse ano, entretanto, um amplo debate ainda precisa e deve ser feito, ao que parece, muito mais por força da Lei, do que por interesse dos entes públicos.

A política do Governo Federal, com a retomada do Ministério da Cultura (MinC), com as leis emergenciais, a Política Nacional Aldir Blanc e uma série de projetos, programas e editais culturais ampliou a necessidade de maior conscientização dos gestores e artistas para a obrigatoriedade da implementação dos SMCs. O SMC não pode ser aprovado sem audiências públicas participativas, sob o risco de apenas chancelar os equívocos já demonstrados na prática, perpetuar a concentração das decisões, dos recursos e manter os privilégios da administração pública. Tudo isso em detrimento à vontade popular e a democratização do fazer cultural e de suas estruturas, incluindo a possibilidade de consumo de cultura por todos (as/es).

Folia para alguns, exclusão para muitos – Um bom exemplo da carência de um SMC ativo, de planejamento participativo, de ausência de percepção das demandas de classes menos privilegiadas e de necessidade de controle social básico é o dito Carnaval de blocos da PMBV. Mesmo que o poder executivo tente vender a ideia de que a folia ocorre em diversos polos, portanto, preocupado em chegar em “todos os cantos”, estes locais selecionados foram em 2025: a Praça Fábio Marques Paracat, Praça Linear Chico do Carneiro, Praça Cabos e Soldados e Praça Clotilde Thereza Duarte de Oliveira. Ou seja, as duas primeiras praças estão localizadas em bairros centrais da cidade, uma outra em um bairro próximo ao Centro, como o Caranã e, finalmente, no bairro Cidade Nova, um pouco mais distante. Então, definitivamente: “não foi em todos os cantos”.

A tentativa de pulverizar eventos que geram, ao que tudo indica, custos milionários aos cofres públicos pela estrutura montada, cachês e logística, precisa dialogar com as demandas populares, com a economia criativa a ser gerada e, notadamente, com uma comunicação social eficaz, sob o risco de se tornarem eventos vazios da participação popular. Fazer a merecida festa da folia apenas no Centro parece ser menos arriscado que dividi-la em bairros também centrais. E, talvez, esse ainda nem seja o centro do problema. Carnaval de blocos com venda de camisa, para alguns foliões, é convite para ‘flopar’. Longe de ser festa popular: elitiza, exclui, distancia.

O consumo, em tese, implica em reunir pessoas e distingui-las. Ninguém convida à mesa àqueles que não desfrutam dos mesmos gostos, preferências e estilos de consumo. Ou seja, o consumo cria ordem, classifica e exclui pessoas, grupos e lugares. E qual o impacto econômico da folia nos bairros escolhidos? O SMC com seus indicadores culturais teria respostas. A importância de ter um Conselho Municipal de Políticas Culturais, por exemplo, é enorme, na medida em que se discutiria o acesso à localização dos equipamentos culturais da cidade e como pode-se ampliar o consumo de cultura. Sem discutir a questão dos “territórios da cultura”, o consumo e as práticas culturais decididas em gabinetes vão acentuar as distâncias e o isolamento social das classes menos privilegiadas.

Outro exemplo: para além do esporte, as mais de 70 praças de Boa Vista são ocupadas regularmente por diversos grupos culturais, como membros da cultura Hip Hop, MCs, capoeiristas, skatistas, músicos, profissionais circenses, ensaios de baterias carnavalescas, ensaios de grupos vinculados à cultura de matriz africana, etc e – mais uma vez: a maioria destas manifestações ocorrem nas praças da zona oeste. E como fica o apoio institucional a estas iniciativas? O SMC resolveria esse problema.

Temperatura abafada para classes menos privilegiadas – Exemplo mais radical da falta de preocupação com a economia da cultura está na realização dos megaeventos municipais. Enquanto nos bairros menos privilegiados tem-se poucos dias dedicados ao “Natal da Paz” (Praça Germano Sampaio), os demais eventos concentrados no centro da cidade podem durar de oito a 10 dias. O megaevento anual de notável qualidade, aberto ao público e realizado no Parque do Rio Branco, intitulado “Mormaço Cultural”, permite com que as camadas sociais mais abastadas cheguem no local em até cinco minutos ou menos em veículos próprios.

Tal fenômeno é quase impossível para moradores de bairros como o Cruviana, que precisam utilizar transporte público, bicicleta, táxi ou pagam transporte por aplicativo, percorrendo a longa avenida Ataíde Teive. O sacrifício dos moradores dos bairros mais populosos de Boa Vista é dobrado, pois com muito sacrifício seguem uma “longa e onerosa” jornada para tentar curtir as atrações nacionais nos palcos monumentais. Tal espectador de classe popular, provavelmente, nem tenha tido condições logísticas de apreciar a vista da cidade a partir do mirante do Parque. É longe.

Durante os dias de evento, a gestão municipal divulgou a extensão dos horários dos ônibus urbanos e táxis-lotação, afirmando que assim garante “mais acesso”. Fato curioso, pois a tarifa dos ônibus permaneceu inalterada (R$ 5,50); já a tarifa dos táxis-lotação aumentou: foi fixada em R$ 10 nos horários estipulados. Fora dos horários, a tarifa retornou ao valor de R$ 7, ou seja, os usuários pagam mais caro em dias de festa. E a atividade de venda de alimentos pela iniciativa privada? Tem normas rígidas e uma taxa que varia de R$ 900 a R$ 1.500,00 para cada empreendedor selecionado para espaços temporários, conforme edital municipal de chamamento para propostas de gastronomia.

Tais espaços devem, sim, ter critérios de utilização. Porém, sem taxas ou com valores modestos, já que são os ‘pequenos’ que mais precisam dessa oportunidade em um evento pago pelos cofres públicos. Não se sabe ao certo qual é o destino do recurso arrecadado pelo município, neste particular. Um balcão de negócios sem acompanhamento daqueles que são mais afetados: os artistas locais, que inclui profissionais da economia criativa e solidária. O SMC pode contribuir com esse controle.

Milho para poucos, altos cachês também – A história se repete quando o assunto é o maior Arraial da Amazônia, nosso São João que custou alguns milhões aos cofres públicos, segue sendo realizado na Praça Fábio Marques Paracat, Centro. A jornada para um morador, por exemplo, do bairro Senador Hélio Campos para chegar ao Arraial, percorrendo ruas e avenidas até chegar na fila da maior paçoca do Guinness Book, pode durar horas, sem música, sem dança, sem maquiagem, sob muito custo. Enfim, talvez a realização de megaeventos em uma cidade como Boa Vista renda boas imagens aéreas na intenção midiática de dizer que milhares de pessoas estão consumindo cultura e, portanto, estão felizes com a cultura local. Um fenômeno “instagramável” de elite.

O que se percebe é uma política cultural reduzida a espetáculos que deixam cachês generosos no bolso das atrações nacionais com estruturas faraônicas que consomem parte significativa do orçamento, desconsiderando uma política com plano de investimentos nas tradições comunitárias e populares. Tal política precisa ter data de validade. Já passou da hora. Quem mora longe de onde se consome a cultura (e o dinheiro público) tem menos chances de estar no lugar “instagramável”. O ‘Ônibus do Forró’, proposta interessante para que grupos conheçam o nosso patrimônio histórico municipal, reitera a atenção dada a área central da cidade. Entretanto, ficam de fora da visita: o busto construído à memória do combatente jornalista João Alencar, expressão da necessidade da defesa de uma imprensa livre; assim como fica de fora o prédio histórico que abrigou o primeiro Hospital da cidade (Nossa Senhora de Fátima), afinal, ambos patrimônios foram demolidos, justamente, com o aval municipal. O SMC resolveria isso.

Enfim, a zona Oeste da cidade e áreas urbanas marginalizadas são penalizadas em todos os sentidos. Da estrutura ao consumo seletivo de cultura. A distância deixa de ser só física: sem o SMC ampliam-se as distâncias econômicas, culturais e simbólicas. Assim, como se sabe há décadas: a capital é dividida em duas cidades antagônicas: a capital dos bairros privilegiados do centro e; a capital “dos outros”, dos bairros afastados – a outra Boa Vista. Por esses e outros motivos, a urgência de aprovar um Sistema Municipal de Cultura discutido com a sociedade civil precisa estar na pauta prioritária do poder público, dos artistas, dos gestores culturais e, sobretudo, de quem entendeu a importância de reduzir as distâncias.

*Éder Santos é Doutor e Mestre em Geografia Cultural, jornalista, sociólogo, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas da Universidade Federal de Rondônia; membro associado da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP) e; do Comitê Pró-Cultura Roraima.

**Jefferson Dias (Mestre Biriba), é mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Especialista em Filosofia da Religião (UERR), Pós-graduado em docência do nível Superior e Bacharel em Direito e Pós-graduando em Compliance, Governança Corporativa e ESG. Conselheiro Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado de Roraima – CONSEPIRR, Membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Africanidades e Minorias Sociais (UFRR), membro do Comitê Gestor da salvaguarda da Capoeira de Roraima e do Comitê Pró-Cultura Roraima, Membro da Federação Roraimense de Capoeira – FERRCAP, Mestre de Capoeira pelo Grupo Senzala e Fundador do projeto social Instituto Biriba – Educar para transformar.