A Constituição Federal de 1988, em seu texto original, previa que deputados e senadores, desde a expedição do diploma, não podiam ser presos, salvo em caso de flagrantes de crime inafiançável, nem processados criminalmente sem prévia licença de sua Casa (CF 88, art. 53, § 1º).
Esse instituto ficou conhecido como foro privilegiado e vigorou até a Emenda Constitucional nº 35 de 2001, que alterou o texto para prever que, após o recebimento da denúncia, o Supremo Tribunal Federal daria ciência à respectiva Casa Legislativa, a qual, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderia, até decisão final, sustar o andamento da ação. (CF 88, art. 53, § 3º).
Durante o período da Constituição de 1988, antes da EC nº 35/2001, nenhuma investigação contra parlamentar federal foi autorizada pelo Congresso Nacional, independentemente do crime pelo qual ele fosse acusado – nem mesmo em caso de homicídio ou tráfico de drogas.
Alguns estudos revelam que mais de 300 pedidos de investigação foram feitos durante esse período, mas nenhum deles foi autorizado, e nenhum deputado ou senador chegou a ser processado criminalmente.
Um dos casos de maior notoriedade foi o do então deputado federal Hildebrando Pascoal, ex-coronel da PM do Estado do Acre, que ficou nacionalmente conhecido como o “deputado da motosserra”.
Ele foi alvo da CPI do Narcotráfico e acusado de chefiar a organização de um esquadrão da morte, sendo posteriormente condenado por homicídio, formação de quadrilha e narcotráfico, com penas que somam mais de 100 anos de prisão.
O crime mais notório, praticado por Pascoal, foi o assassinato do mecânico Agílson Firmino, cujo corpo foi esquartejado com uma motosserra. O filho de Firmino, de 13 anos, também foi morto, com mais outras duas vítimas testemunhas do primeiro homicídio.
Em fevereiro de 1999, o STF abriu inquérito para apurar o envolvimento de Pascoal com grupos de extermínio no Acre. O inquérito foi instaurado pelo presidente do STF, ministro Celso de Mello, com base em um relatório elaborado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, vinculado ao Ministério da Justiça.
O passo seguinte seria a abertura de processo judicial, mas, para isso, seria necessária a autorização da Câmara dos Deputados ao STF. No entanto, a Câmara optou por cassar o mandato de Pascoal com base nas investigações da CPI, e ele foi julgado na primeira instância pelos crimes.
Esse e outros episódios deram impulso, em 2001, à aprovação da EC nº 35, que extinguiu a exigência de autorização do Congresso para a abertura de processos criminais contra os parlamentares.
Ainda sob o texto da EC nº 35, pouco se observava o julgamento de deputados e senadores pelo STF. Os processos existiam, mas levavam anos sem serem concluídos. Durante esse tempo, alguns perdiam a eleição e, consequentemente, também o “foro privilegiado”, passando a responder pelos seus crimes em juízos de primeira instância. Outros eram eleitos governadores, e a competência deslocava-se para o Superior Tribunal de Justiça; ou eram eleitos prefeitos, e a competência ia para o Tribunal de segunda instância, o que resultava em processos que, muitas vezes, se encerravam pela prescrição.
Outro caso emblemático, que, na minha visão, começou a mudar a forma como o Supremo Tribunal Federal tratou os processos de deputados e senadores, foi o do então Senador da República Ronaldo Cunha Lima, que respondeu pelo crime de tentativa de homicídio qualificado.
O Inquérito (INQ 1057) chegou ao Supremo Tribunal Federal em 1995, após Ronaldo Cunha Lima ser eleito senador, passando a ter direito ao “foro privilegiado” por prerrogativa de função. O Inquérito foi convertido em Ação Penal (AP 333).
A data do julgamento foi marcada para 5 de novembro de 2007, quando se completavam 14 anos da tentativa de homicídio. Porém, o senador Ronaldo Cunha Lima renunciou ao mandato pouco antes do julgamento, perdendo o “foro privilegiado”, e o processo remetido à 1ª Instância de João Pessoa/PB, para ser julgado pelo Tribunal do Júri. Mesmo com a renúncia do senador, o Supremo Tribunal Federal, em uma votação apertada de 6 votos a favor da perda do “fórum privilegiado” e 5 votos contra, quis manter o julgamento na Corte.
A partir desse evento, os ventos mudaram: o “foro privilegiado” passou a ser desprivilegiado, já que a condenação pela Suprema Corte impossibilitaria a interposição de recursos e anteciparia o cumprimento da pena.
Durante todo esse período da história, pude perceber um movimento pendular. Antes de 2007, pessoas com problemas na Justiça buscavam obter mandatos de deputado federal ou senador para escapar de seus processos criminais, que ficavam suspensos durante o tempo de mandato, ou que eram iniciados, mas não concluídos.
Após o caso do Senador Ronaldo Cunha Lima, esse movimento pendular mudou, e mandatos deixaram de ser buscados como forma de escapar de processos.
A aprovação da PEC da Blindagem, como foi denominada para imprensa, ocorre em um momento ainda mais grave da história do Brasil, quando se percebeu o avanço das facções criminosas infiltrando-se no mercado financeiro e na política.
Essa Emenda Constitucional, embora busque resgatar o texto original da Constituição de 1988 – que foi posteriormente alterado por não ter se mostrado eficaz na prática -, provavelmente aumentará a procura por mandatos de deputados federais e senadores por parte de criminosos ligados ao crime organizado.
Como detentores de grande poder financeiro e capacidade de mobilização nas comunidades, essas pessoas enxergam nas eleições uma oportunidade estratégica para garantir imunidade e influência política. Assim, a medida pode inadvertidamente, fortalecer a presença do crime organizado no Congresso Nacional, colocando em risco a integridade das instituições democráticas e influenciando o combate efetivo à criminalidade no país.
Alexander Ladislau Menezes
Advogado
Especialista em Direito Eleitoral – IDP
Mestre em Direito Constitucional – IDP