A fotografia do meu momento é a gordice do Queceuene, um topônimo apagado pela exploração do homem. Mas o que se passa diante dos meus olhos é o bater de asas da música, voando ao horizonte. Não há vozes, apenas a essência da música e o grande corpo do Rio Branco, que se arrasta para além dos meus olhos. O coração de julho pulsa, em seus últimos instantes, mas ainda me recordo do enterro dos meses anteriores — em cada enterro, um pedaço de mim foi sepultado. Hoje, dou-me a chance de cortejar uma oportunidade de semear o verbo amar, de sentir aquelas cócegas no coração, com o intuito de não congelá-lo por toda uma eternidade. Chegou o momento de abrir as portas para o amor. Amor, repito em bom tom: quero um amor — não aquela euforia da paixão, nem o adoecimento do amor. Quero a sincera compreensão de amar.

Um copo de amor com racionalidade, por favor!

A noite ia tragando o último instante do entardecer. O céu já se apagava; já não via o corpo do Rio Branco. Os carros vestiam a avenida, e as estrelas já lambiam o céu negreiro. Boa Vista já ganhava seus pequenos brincos noturnos. Antes de deitar, com a vela branca acesa ao lado da cama, tirei a fé do bolso e me coloquei a rezar:

Deuses do universo, dizem que o sagrado e o amor andam juntos. Eu imploro: façam o amor pousar na minha janela ou pegar o mesmo ônibus que eu, por favor.

E a vida foi dando muricis, e Roraima sorria para os que se vão e para os que chegam. A poesia da morte acontecendo, e a prosa nascendo para alguns. A madrugada, apenas para as garimpeiras, enquanto a cidade dorme, assim como seu povo. O dia se espreguiçou e o povo acordou. Assim se fez a passagem do tempo — sem lambidas no céu, apenas os grandes olhos azuis que fazem do dia, dia. A vida acontecendo e uma vontade em mim crescendo, assim como cresce o crime social. Deixei o acaso acontecer, enquanto eu era rabiscado por uma existência questionável. De repente, uma mensagem no celular, com uma pequena frase:

“Date de respeito!!”

Borboletas estomacais, terremotos de euforia, pulinhos de criança feliz, sorriso de bobagem e uma leveza no meu verbo de existência. Eu não tinha a verdade absoluta, mas a temporária: alguém, no mundo virtual, comentava uma foto minha. Alguém compartilhava a mesma linha de pensamento, concordava que suco de murici é a melhor coisa do mundo. Alguém tirou tempo para juntar a simbologia de 14 letras. Alguém sinalizou uma oportunidade de palavras. Eu tinha uma projeção dos meus desejos do outro lado da tela. Eu tinha um coração que poderia bater muito forte ao escutar meu nome. Seria um sinal dos Deuses? Ou Santo Antônio teria escutado minhas lamúrias? A pequena frase foi crescendo. O diálogo já era um recém-nascido com nome e sobrenome. As fotos já estavam vistas e revistas. Tínhamos uma sociabilidade virtual de falar de si. Éramos o beber de duas garrafas de dopamina — embriagados em uma perspectiva particular e um destino comprado no crediário.

Neste corpo que carrega o nome de Roraima, já havia borboletas estomacais voando — assim como araras, flamingos, papagaios, periquitos, urubus, sabiás… Acho que até galinhas estavam voando em mim. Eu tinha a fauna sentimental me modificando, pois eu me pintei de felicidade. Estava sendo feliz naquela troca virtual. Mastigava uma conversa de bom sabor — o sabor que eu desejava. Um suspiro grande. Parei, por um instante, a grande voz do mundo e clamei a São Judas Tadeu, que me desse força e coragem para convidar aquela pessoa para sair. Iemanjá sorriu lá de longe e disse: — Homem, te vai e corre atrás do amor! Escutei o bater do tambor de Alabê. Cabocla Jurema só gritou: — Vaiiiiii!

E assim, ao som da grande voz do mundo, eu digitei e enviei: — Pedalar uns 25 km, depois um suco de cajá? Isso era o mais atrativo que eu tinha para oferecer em um vínculo virtual, pois eu tremia na minha existência sentimental — um solo em que eu já tinha desacreditado.

O sim nasceu, como nasce uma esperança em tempos de seca — o convite foi aceito. Alguém estava disposto a fazer um passeio de bike, tomar um suco e, de sobremesa, uma partida de xadrez. O mundo estava criando um palco de possibilidades para a fecundação de um sentimento afetivo que, talvez, pudesse ser batizado de amor. Tudo aconteceu como um leve sereno no entardecer. Pedalamos, tomamos suco, jogamos xadrez e bordamos um diálogo de apresentação com temáticas plurais. Cada um trouxe sua própria narrativa — ambos desconhecidos, mas presentes e familiares nas palavras. O tempo passou tão rápido… rápido se fez o tempo. Tinha, diante de mim, naquele instante, uma pessoa que poderia ser meu futuro amor. Encerrado o encontro, cada um seguiu seu rumo. Ficamos apenas com os próprios pensamentos — e a certeza do próximo encontro. Dentro de mim, borbulhava uma ansiedade de querer construir momentos. Uma lista com possibilidades de criar recordações afetivas, pois o amor não se constrói apenas com singelas palavras. O amor se solidifica com momentos reais — momentos vividos e falados.

Já no segundo encontro, pude notar mais a vida alheia que estava diante dos meus olhos. Dediquei-me a prestar atenção ao sabor da voz que saía daqueles lindos lábios — assim como à sua narrativa, ao corpo inteiro, que era a naturalidade do que é belo, sem excessos. Mas eu me enfeiticei pelos olhos. Lindos como uma noite libertina sem estrelas. Olhos que continham uma cigana vestida de vermelho. Seriam aqueles olhos o caminho para o amor? Queria eu amá-los como se ama o próprio destino?

O encontro se fez em um concerto — era música, desejo e felicidade reunidos em um só lugar. Naquele instante, havia conforto em meu coração, cicatrizado por tentativas frustradas. Um copo quebrado começava a ser consertado. Uma boca faminta era alimentada em sua fome. Fiz de mim um verbo, acompanhado por um corpo que, mesmo sentado, era a continuidade de mim. Mesmo no silêncio, deixava-me confortável. O tempo se fez música. A música terminou e então fomos mastigar nossas histórias. Tempestades no oceano. Nossos verbos dormiram juntos. A espuma do mar veio à praia. A madrugada se desbotou no canto do dia. Ao amanhecer, o canto de um pássaro me trouxe a tranquilidade de que eu poderia amar e me edificar em um relacionamento. Eu seria o hospedeiro do amor — e seria solo para amar.

Beijos afetivos — e cada um pegou seu rumo, pois o social é uma luta individual. O dia se tornou um filme sentimental. Eu ria para cada canto do mundo, pois estava infectado com um querer de amar. Eu amaria aqueles olhos — eles se tornariam o meu destino e estariam comigo até a velhice. Mãos dadas até o último suspiro de nossas vidas. Eu teria a base de toda a minha poesia ao meu lado. Seria o seu colo afetivo, cuidaria dele na doença e o aplaudiria no sucesso.

 Os meus afetos teriam um corpo para recebê-los. Antes de mastigar o meu meio-dia, precisei me certificar de que poderia avançar na minha conquista. Aqueles olhos teriam que me dizer sim. Sim, em uma proposta de conhecê-lo melhor. Sim, na certeza de que as coisas poderiam acontecer. Mas isso não significava a certeza exata de que nasceria o amor. Apesar da febre de querer amar, tenho consciência de que o amor não nasce apenas de palavras. É preciso vontade e atos simbólicos, pois o tédio e a rotina hão de chegar — assim como, talvez, o desinteresse pelo amor.

Não estava diante do feitiço dos olhos, mas, de maneira virtual, perguntei-lhe se poderia conhecê-lo melhor. Em instantes, uma tragédia chegou — uma mensagem de destruição, uma faca enfiada na esperança. Recebi, daquela outra parte que ainda não se tornara o meu amor, um sólido não, acompanhado da justificativa de que aquela pessoa — cujo destino já estava projetado nos meus — estava conversando com outra. E a nossa conexão? E o papo? O que faço com os meus projetos que tinham aqueles olhos como ponto de partida? O meu mundo se quebrou. As pernas ficaram sem vida. Dentro de mim, uma enchente começava a crescer. Um animal uivava de dor. Ao mesmo tempo, algo queimava em mim — o ódio. Eu praguejei aos céus, na minha fúria de homem:
— Deus, eu não tenho culpa daqueles que lhe crucificaram, mas por que estou a ser torturado no afeto? Enquanto meus gritos ganhavam o céu, minhas lágrimas regavam o solo da minha terra. — Mãe da Terra, sentes o sabor de mim? Esse sabor é de dor — dor da rejeição!

Como posso eu querer amar aquilo que não posso ter? Em chagas me tornei. Revoltado pelo crime de querer amar. De ser sincero nas palavras. De, inocentemente, desejar conhecer alguém.  Naquela tarde, fiquei enfermo para a vida, pois carregava as grandes feridas da rejeição expostas na pele. Quem curará as minhas chagas de um sentimento não correspondido? Oxalá, se me escutas, diga-me: em que momento eu errei? Quais foram as palavras que não pronunciei? Diga-me, jogue-me um raio — mas diga-me onde falhei, pois levarei essa cruz para sempre comigo.

Eu tenho dor. Tenho fome de afeto. Sou um miserável, pois me foi negado o pão do amor. Sigo em prantos — até Lúcifer me olha com pena, pois em meu rastro há a cor de uma dor sentimental. Parei na esquina. A tarde ainda ria, sem garimpeiras, apenas o trânsito com seu barulho. De repente, um morador de rua aparece e se aproxima. Olha-me com pena e pergunta se posso ajudá-lo com algum trocado. Eu lhe devolvo o olhar, ainda com vestígios de choro, e respondo: — Não. O homem, antes de partir, diz: — Deus abençoe seu coração! E lá se foi o homem, na sua sujeira, carregando sua cruz. E eu, a minha.

Acabei de dizer não. Eu rejeitei a fome alheia. Embora não fosse minha responsabilidade, eu poderia ter tido compaixão daquela alma — alimentá-lo em sua fome, assim como eu queria ser alimentado no amor. Mas, naquele momento, eu não tinha condições de ajudá-lo. Eu não estava bem. Eu não tinha como ajudá-lo. Talvez, o ser no qual eu queria me banhar em amor também não tivesse disposição ou condição de amar. Ou, simplesmente, não estivesse na mesma intenção que eu. Talvez fosse também um ser machucado, cheio de farpas, quebrado por algumas tentativas. Mas o que fazer diante dessa incerteza de interpretações? O que faria eu, neste instante, questionando uma resposta alheia? Como me coloquei em prantos? Como me permiti perder a lógica do momento?

Não é só um não de sentimento recusado por um corpo alheio ao meu — é uma cadeira simbólica vazia dentro de mim. É a ausência do grande seio materno, a figura do pai, o colo da mãe, o enterro da avó. Aquele não alheio tocava em todos os outros que estavam submersos nas cicatrizes da alma. O que senti não é responsabilidade de ninguém, pois fui eu quem projetou os sonhos. O desejo de viver um amor é uma miragem minha — distante, íntima, que cabe apenas ao meu querer. O outro tem a liberdade de continuar o projeto — ou não continuar — sem qualquer condenação, pois também tem seu poder de escolha. Assim como eu tenho o meu voto de querer. Se comecei isso sorrindo, passando pelas sensações amáveis, não posso acabar em prantos por causa de um não. Isso seria um ato narcisista, pois a voz do outro seria silenciada na escolha. A vida se faz de ressignificados. Quem abriu a porta para a possibilidade de amar fui eu. E, com calma, sem a euforia da ansiedade, sou eu quem decide quem entra — e quem permanece. Mas o outro também tem autonomia para decidir entrar e permanecer, pois um relacionamento se faz a dois.

Senhoras e senhores! Quem somos quando o “não” é dito à nossa essência? Que feridas carregamos nos nossos corpos? Que história a rejeição plantou em nossos corações? Entre os “nãos” da vida, há sempre um “sim” de aprendizado. Amadurecer é entender que o amor não se faz só de palavras, mas de presença, tempo e escolha mútua. E que amar, antes de tudo, é reconhecer-se digno, mesmo na ausência do outro.

Ass.: Histayllon Santos (Aspirante a escritor)

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