OPINIÃO

"RESPOSTA AO TEMPO": Uma leitura filosófico-poética à luz do estoicismo e da ontologia agostiniana do tempo

A canção “Resposta ao Tempo”, composta em 1998 por Cristóvão Bastos (melodia) em parceria com Aldir Blanc (letra) — este último enaltecido pelo crítico musical Tárik de Souza, na obra Tem mais samba: das raízes à eletrônica (2003), como um verdadeiro artífice do lirismo e do subjetivismo poético (SOUZA, 2003, p. 289), logrou ampla aceitação ao firmar-se no imaginário coletivo na voz memorável de Nana Caymmi.

Mais do que um registro estético, a composição erige-se como lócus reflexivo sobre a condição humana diante da inexorabilidade temporal, permitindo um diálogo com sistemas filosóficos que tematizam a efemeridade e o sentido da vida. Nesse horizonte, o presente artigo propõe uma leitura hermenêutica que estabelece aproximações entre os versos da canção e as categorias elaboradas pelo estoicismo e pela ontologia agostiniana do tempo.

A tessitura (organização) lírica da canção tem como introito os versos inaugurais: “BATIDAS NA PORTA DA FRENTE / É O TEMPO”, configurando-se como um canto-resposta em que a expressão “É O TEMPO” assume, no transcorrer da composição, uma função explicativa e anafórica, isto é, retoma frequentemente uma ideia já mencionada anteriormente, introduzindo a personificação do tempo, apresentado como uma entidade que se impõe à interioridade do eu lírico, forçando-o a um confronto inevitável. O tempo surge como protagonista simbólico, instaurando uma tensão entre a imutabilidade do devir (vir a ser; tornar-se) e a ânsia humana de permanência.

O gesto subsequente, “BEBO UM POUQUINHO PRA TER ARGUMENTO”, metaforiza a necessidade de uma preparação anímica (psíquica) diante da fatalidade do tempo, sugerindo não apenas fragilidade, mas a tentativa de encontrar recursos, ainda que efêmeros, para enfrentar a consciência da finitude. Aqui se aproxima do estoicismo, que prescrevia a razão como antídoto às paixões perturbadoras, orientando o indivíduo à serenidade (ataraxia) diante daquilo que não pode controlar. O “argumento” que o eu lírico busca, ainda que simbólico, ecoa o esforço estoico de dominar o pathos (sofrimento).

Quando afirma “MAS FICO SEM JEITO CALADO, ELE RI / ELE ZOMBA DO QUANTO EU CHOREI / PORQUE SABE PASSAR / E EU NÃO SEI”, o tempo é figurado como ente impassível (insensível), dotado de um poder soberano que transcende as dores humanas e o eu lírico reconhece sua impotência diante desta marcha irreversível. Nesse prisma, o tempo prossegue desafeiçoado das angústias humanas. A zombaria atribuída ao tempo evidencia sua indiferença, pois tem na essência o devir incessante (estar sempre em transformação, em constante movimento, sem jamais parar ou fixar-se), traço que remete à concepção heraclitiana do fluxo incessante (panta rhei) e à crítica agostiniana segundo a qual o passado não subsiste fora da alma, é apenas apreendido como memória. Porém, na composição, o “Eu lírico” implexo (embaraçado) em suas reminiscências (lembranças), torna-se prisioneiro de um passado, reiterando uma impossibilidade de vencer sua constituição natural e deixar para trás o que passou, especialmente aquilo que fora doloroso.

A estrofe “NUM DIA AZUL DE VERÃO / SINTO O VENTO / HÁ FOLHAS NO MEU CORAÇÃO / É O TEMPO” recorre à imagética natural para expressar a nostalgia que permeia a consciência temporal. O coração, transfigurado em árvore, abriga folhas, metáforas das lembranças e afetos, que, ao serem levadas pelo vento, revelam a dimensão transitória da existência. Trata-se de uma evocação lírica do escoamento das vivências, sujeitas à dispersão pelo sopro impiedoso do tempo. Ao afirmar “Há folhas no meu coração / É o tempo”, o eu lírico figura a memória como repositório de recordações que, à maneira agostiniana, conferem densidade ao presente. Se o tempo cronológico se esvai, a experiência humana resiste.

A passagem, “RECORDO UM AMOR QUE PERDI / ELE RI”, inaugura um diálogo de contrários entre memória e presente, onde a lembrança do amor perdido não provoca compaixão no Tempo; ao contrário, este ri, numa postura de indiferença, como se a dor humana fosse um episódio ínfimo diante da vastidão temporal. Tal gesto, ressoa com a ataraxia estoica, que rejeita a tirania das paixões e coloca o destino (fatum) como uma realidade inalterável. Para o estoico, a perda é inevitável, e a serenidade advém da aceitação da ordem cósmica: o amor perece porque tudo que nasce está condenado à transitoriedade.

A sequência – “DIZ QUE SOMOS IGUAIS / SE EU NOTEI” – introduz um paradoxo: a igualdade entre o eu e o Tempo não reside na eternidade, mas na incapacidade de deter-se. O sujeito e o Tempo compartilham a fluidez; ambos são instáveis, incapazes de permanecer. Essa reflexão reverbera a visão agostiniana, para quem o tempo não é substância fixa. Em Confissões (XI), Agostinho assevera que o passado sobrevive apenas na memória, o futuro na expectativa e o presente no ato da atenção – tudo condensado no espírito. Assim, quando o eu poético afirma “POIS NÃO SABE FICAR / E EU TAMBÉM NÃO SEI”, enuncia a condição ontológica da criatura: prisioneira do fluxo temporal, não possui consistência em si mesma, senão no horizonte de Deus.

O verso “E GIRA EM VOLTA DE MIM” intensifica essa ideia: o Tempo não é mero pano de fundo, mas um ente que circunda, envolve e consome. O movimento circular sugere a inevitável repetição – lembrando o conceito estoico de Eterno Retorno, no qual tudo retorna em ciclos cósmicos, sem possibilidade de fuga. Em contraste, Agostinho rompe com essa circularidade, pois concebe a história como linearidade teleológica, orientada para a consumação escatológica. Essa diferença ilumina a tensão implícita na canção: o tempo da letra parece girar, devorar, apagar, mas para a razão cristã, há um fim último que dá sentido ao devir.

O eco lírico do segmento “SUSSURRA QUE APAGA OS CAMINHOS / QUE AMORES TERMINAM NO ESCURO / SOZINHOS” é de uma contundência metafísica: o Tempo, enquanto agente, apaga as pegadas, dissolve identidades, conduz à solidão radical. Para o estoico, essa é a ordem natural das coisas; para Agostinho, é a consequência do apego ao transitório, pois somente Deus possui a verdadeira eternidade (aeternitas), que é imutabilidade absoluta. Assim, a canção dramatiza a tragédia da condição humana: situada entre o desejo de eternidade e a implacabilidade da mudança.

A tensão atinge seu ápice nos versos “RESPONDO QUE ELE APRISIONA / EU LIBERTO / QUE ELE ADORMECE AS PAIXÕES / EU DESPERTO”, instaurando uma dialética que opõe o tempo cronológico (kronos) à intensidade qualitativa da experiência humana (kairós). Aqui, o eu lírico aproxima-se da ética estoica em sentido inverso: se, para os estoicos, a exemplo de Sêneca, a liberdade consistia em não depender das paixões, para Aldir Blanc, libertar-se é precisamente reavivar emoções adormecidas, como se a resistência ao tempo se desse por meio da memória afetiva e do amor. Se os estoicos viam na razão a salvaguarda contra os males advindos das recordações, a canção celebra justamente o inverso: a recordação como insurgência vital contra a linearidade inexorável do tempo.

A problemática agostiniana do tempo, exposta no Livro XI das Confissões, converge com a dialética poética da canção, ainda que sob outro viés. Para Agostinho (1997, XI, 20, 26), o tempo não subsiste como dimensão objetiva, mas como distensão da alma (distentio animi), repartida em três presentes:

  • Presente das coisas passadas → a memória
  • Presente das coisas futuras → a expectativa
  • Presente das coisas presentes → a atenção

Conforme referido por Agostinho, esses “existem exclusivamente na alma”, De tal modo, o patrístico, desloca a compreensão do tempo para uma grandeza interior, fundando uma noção de temporalidade subjetiva. Nesse horizonte, a memória torna-se o espaço ontológico em que o passado permanece presente, não como realidade física, mas como imagem espiritual. Ela assume, portanto, uma função ética e existencial: guardar experiências que orientam a ação no presente e a esperança no futuro.

Assim, a memória, longe de ser mero depósito de fatos pretéritos, converte-se no fundamento da identidade pessoal e do itinerário espiritual, já que, para Agostinho (1997, XI, 20, 27), “o presente das coisas passadas é a memória”. Nela, o ser humano reencontra o vestígio de sua história e, por extensão, o caminho para Deus, constituindo um dos núcleos da antropologia agostiniana.

O clímax hermenêutico reside nos versos: “E O TEMPO SE RÓI / COM INVEJA DE MIM / ME VIGIA QUERENDO APRENDER / COMO EU MORRO DE AMOR / PRA TENTAR REVIVER”. Nesta inversão paradigmática, o tempo, outrora soberano, é degradado à condição de ente carente, invejoso da densidade existencial que apenas o humano pode experienciar. A eternidade, desprovida de páthos, é aqui desmascarada como incapaz de alcançar a plenitude que se condensa no instante vivido com amor.

A conclusão, “NO FUNDO É UMA ETERNA CRIANÇA / QUE NÃO SOUBE AMADURECER / EU POSSO, ELE NÃO VAI PODER / ME ESQUECER”, encerra a composição com uma metáfora que, sob uma leitura filosófica, revela a incompletude ontológica do tempo: eterno, mas imaturo, incapaz de produzir memória valorativa. Aqui reside a convergência com Agostinho, para quem apenas a alma humana é capaz de conferir sentido à passagem temporal, pois “são três os tempos […] e estes existem na alma, e não os vejo em outro lugar” (AGOSTINHO, 1997, XI, 20, 26).

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1997.

BLANC, Aldir; BASTOS, Cristóvão. Resposta ao Tempo. Rio de Janeiro: Universal Music, 1998.

EPICTETO. Manual de Epicteto. Trad. José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 2008.

HÄDOT, Pierre. A cidade interior: introdução ao pensamento dos antigos. São Paulo: Loyola, 1999.

SÊNECA. Cartas a Lucílio. Trad. J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.

SOUZA, Tárik de. Tem mais samba: das raízes à eletrônica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2003

Obs.  “Disponibiliza-se, a seguir, um link contendo uma sugestão interpretativa da canção “Resposta ao Tempo” em versão voz e violão, a qual constituiu objeto da presente análise.”

Prof. Weslley Danny – Doutor e Mestre, graduado em Filosofia, História, Letras, Biologia e Enfermagem. No que tange o segmento humanístico compila pós-graduações nas seguintes áreas: (ciência política), (filosofia, sociologia e ciências sociais), (ética e filosofia política) e (história e antropologia). 

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