Ronildo Rodrigues dos Santos
Cientista Social
A mais recente movimentação na Câmara dos Deputados, que aprovou por 346 votos a 97 a urgência de um projeto para derrubar a Medida Provisória que eleva o IOF e taxa setores como apostas online, fintechs e investimentos isentos como LCIs e LCAs, levanta uma pergunta essencial: quem os parlamentares realmente representam? Em teoria, os 513 deputados federais foram eleitos para defender os interesses do povo brasileiro. Na prática, porém, decisões como essa revelam que, muitas vezes, o que prevalece são os interesses do grande capital, do mercado financeiro e dos setores mais privilegiados da economia.
Essa votação acelerada — articulada por Hugo Motta, presidente da Comissão Mista de Orçamento — tem implicações profundas. A proposta do governo federal com a MP era simples: ampliar a arrecadação sem penalizar ainda mais os trabalhadores e os mais pobres. Em vez de elevar impostos sobre o consumo, a ideia era taxar justamente setores que lucram bilhões e que, até aqui, têm contribuído muito pouco com o orçamento público. Era um passo tímido, mas necessário, rumo à justiça tributária. No entanto, ao aprovar a urgência para derrubar essa medida, a Câmara demonstrou, mais uma vez, que não está disposta a mexer nos privilégios dos mais ricos.
Por trás dessa decisão não está apenas a defesa de determinados setores econômicos. Há também uma disputa de poder entre o Congresso Nacional e o governo federal. O Legislativo, dominado por forças conservadoras e comprometido com interesses de grandes corporações, tenta limitar a capacidade de ação do Executivo. Essa é uma forma de afirmar sua força institucional, mas também de proteger alianças políticas e econômicas que garantem sua permanência no poder. O medo do Congresso não é apenas perder influência; é ter que prestar contas à população sobre suas escolhas. É ser desmascarado como defensor de uma minoria rica e poderosa em detrimento da maioria pobre e trabalhadora.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
A reação contrária à MP mostra que, quando se trata de taxar o capital, a suposta base do governo se desmancha. Os discursos sobre responsabilidade fiscal, tão repetidos quando se trata de cortar gastos sociais, desaparecem quando a proposta é cobrar mais de quem lucra com a especulação financeira, com apostas ou com operações isentas. É nesse momento que o Parlamento se revela: não como casa do povo, mas como reduto de interesses privados travestidos de representação democrática.
A proposta do governo, embora limitada, era acertada ao tentar buscar equilíbrio fiscal por meio de uma tributação mais justa. Seus pontos positivos superam os negativos, principalmente ao colocar na mesa a necessidade de rever a estrutura de isenções que perpetua desigualdades. O problema, contudo, é estrutural. O Brasil tem uma das cargas tributárias mais injustas do mundo: quem tem menos paga mais proporcionalmente, enquanto os mais ricos continuam blindados. Ao derrubar medidas como essa MP, o Congresso perpetua esse modelo e obriga o governo a buscar outras fontes de arrecadação — muitas vezes por meio de impostos regressivos, que afetam diretamente o cotidiano da população mais vulnerável.
No final das contas, quem perde é o povo. Perde porque vê sua possibilidade de viver com dignidade sacrificada em nome de lucros privados. Perde porque os recursos que poderiam financiar saúde, educação, moradia e políticas públicas são desviados para sustentar privilégios. Perde porque sua voz é ignorada em um Parlamento que deveria representá-la, mas que cada vez mais se transforma em uma trincheira do mercado contra os direitos sociais.
Diante disso, o Brasil precisa de um novo pacto. Um pacto que enfrente os privilégios fiscais dos super-ricos, que tribute lucros e dividendos, grandes fortunas e heranças bilionárias. Um pacto construído com a participação da sociedade civil, das universidades, dos movimentos sociais e de todos aqueles que ainda acreditam que um outro país é possível. Um pacto que devolva ao Parlamento sua razão de existir: servir ao povo e não ao poder econômico. É hora de virar o jogo. É hora de perguntar, sem rodeios e com coragem: quem serve a quem no Parlamento brasileiro? E mais do que isso: até quando vamos permitir que ele continue servindo aos de cima enquanto esmaga os de baixo?