
Sebastião Pereira do Nascimento*
Estimuladas principalmente pela demanda da China, ao longo das últimas décadas, as commodities vêm mantendo um cenário de alta global, sobretudo no contexto de produtos derivados da agricultura e pecuária, como soja, milho, café, açúcar, algodão, boi gordo, etc., incluindo ainda produtos decorrentes da extração mineral: petróleo, minério de ferro, gás natural, etc. Todas essas commodities, negociadas globalmente em bolsas de valores, não só perfazem os pilares da economia mundial (essenciais para a produção de bens de consumo), como impactam diretamente a inflação, permitem especulação e a proteção de preços, já que os valores são definidos pela oferta e demanda. Além disso, as commodities, por serem matérias-primas produzidas em larga escala, frequentemente geram sérios impactos ao meio ambiente.
Em relação ao Brasil, não diferente de outros países produtores de commodities, são notórios os grandes desgastes ambientais, principalmente o desmatamento gerado pela produção de monocultura em larga escala. Estudos recentes falam que cerca de 40% do desmatamento tropical está ligado às ações do agronegócio: poluição (agrotóxicos, resíduos químicos), esgotamento de recursos naturais (água, solo, vegetação, etc), impacto sobre a fauna (espécies ameaçadas ou em extinção) e mudanças climáticas (especialmente pela queima de combustíveis fósseis e a liberação de gases de efeito estufa como CO₂ e metano, que retêm calor e aquecem o planeta). Contudo, apesar de alguns esforços no sentido de forçar a busca por commodities ambientais (como créditos de carbono e energias renováveis) para incentivar a sustentabilidade dos ecossistemas, na prática não se tem uma efetividade que funciona de forma eficaz, pois necessita-se também de diversas regulações e fiscalização robustas.
Todas essas ações decorrentes do agronegócio trazem consigo um conjunto de alterações ambientais, equivalentes ao que vem acontecendo, por exemplo, no domínio morfoclimático do cerrado, no coração geográfico do Brasil, o qual tornou-se epicentro de uma emergência ambiental silenciosa em decorrência da expansão agropecuária, na maioria das vezes praticada de forma desordenada. Algo negligenciado pelos grandes produtores e longe dos olhos do grande público.
No cerrado, segundo dados oficiais inseridos no Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade, do Instituto Chico Mendes de Conservação (ICMBio), centenas de espécies de animais podem desaparecer daquele ecossistema, devido à retirada da vegetação, mau uso do solo, além das queimadas intermitentes. Segundo o ICMBio, o cerrado já perdeu cerca de 80% de sua vegetação original e, em razão disso, os dados mostram um cenário alarmante: das 5.191 espécies animais (vertebrados e invertebrados) presentes na região, pelo menos 478 estão ameaçadas de extinção. Destas, 64 espécies estão criticamente em perigo (último estágio antes do desaparecimento total na natureza) — essas espécies do cerrado abrangem desde peixes minúsculos até aves e mamíferos icônicos da região.
Em que pese tudo isso, outros grandes ecossistemas brasileiros também sofrem ameaças severas, com destaque para caatinga, pantanal, campos sulinos, além das áreas florestais da amazônia e mata atlântica. Quanto ao grau de deterioração desses ecossistemas — como no cerrado —, alguns estão muito próximos de pontos de não retorno devido às intensas atividades humanas que influenciam também nas mudanças climáticas. Em Roraima, o lavrado, uma paisagem aberta mais ao norte do domínio morfoclimático da amazônia, a cada ano também vem sendo mais explorado pela expansão da monocultura de commodities, principalmente de soja e milho.
Portanto, em função da supressão da vegetação e outros impactos ambientais, das mais de 730 espécies da fauna de vertebrados registradas para o lavrado (incluindo peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos), além dos invertebrados, vêm sofrendo algum tipo de agressão, sendo algumas em status de “perigo”, outras na categoria de “vulnerável” e outras classificadas como “ameaçadas”, na iminência de ingressar na lista vermelha. Em suma, todas essas categorias agregam diversas espécies de animais silvestres, as quais correm o risco de desaparecer caso a trajetória atual da expansão agrícola se mantenha.
E, como exemplo, dentre as espécies mais ameaçadas, estão os lagartos Gymnophthalmus leucomystax Vanzolini & Carvalho, 1991 e Gymnophthalmus vanzoi Carvalho, 1997, dois pequenos lacertílios, descritos de Roraima, que vivem exclusivamente no lavrado, em áreas potencialmente sujeitas a práticas de grandes plantações de soja e milho. O primeiro é associado a cupinzeiros nos tesos do lavrado, restrito a uma área de campo aberto do município de Alto Alegre. O segundo vive no folhiço seco de folhas do caimbé (Curatella americana), em estreita faixa de bordas de mata com áreas abertas. Tanto esses lagartos como outras espécies da fauna que ocorrem nas áreas abertas locais dependem da integridade desse ecossistema para que continuem a existir, desempenhando funções essenciais (polinização, dispersão de sementes, controle de pragas, ciclagem de nutrientes, etc.) para manutenção do lavrado.
Quanto à importância dessas áreas abertas para a fauna local, especialistas são unânimes em apontar que o cuidado e a preservação de áreas abertas são de fundamental importância para a manutenção da biodiversidade, uma vez que o desaparecimento de animais decorre de um conjunto de pressões interligadas, sendo as principais delas a perda total ou a fragmentação dos habitats naturais, provocadas pela agropecuária de grande escala. Essa atividade agropecuária, quando negligenciada no contexto ambiental, acaba criando fragmentos isolados de ambientes, nos quais muitas espécies não conseguem sobreviver por falta de espaço, alimento e limitação das relações ecológicas. O uso inadequado do solo, agrotóxicos, fogo e as mudanças climáticas atuam como fatores multiplicadores desses problemas. O solo perde sua capacidade de retenção, o escoamento superficial aumenta, enquanto as vazões dos igarapés e dos rios diminuem; as nascentes e as veredas de buritizais desaparecem, transformando vários ecossistemas de áreas abertas em um ambiente cada vez mais árido e empobrecido.
Para reverter esse cenário, manter a sobriedade humana é um fator importante. Além disso, é preciso deixar de tratar o lavrado como se fosse um sistema de formação vegetal “pobre”; também urge procurar estabelecer políticas específicas, visando medidas que possam eliminar o uso ilegal da terra e compensar a supressão legal por meio de incentivos, recuperação de áreas degradadas, consorciação da produção agrícola-pecuária, além de um plano que possa prever uma revisão do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE). Um instrumento de planejamento territorial que possa dividir o território do lavrado em diversas zonas, baseando-se em suas características ambientais e socioeconômicas. No mesmo contexto, há de prever a possibilidade de ampliação da reserva legal em áreas críticas, além da definição de áreas prioritárias para compensação ambiental.
Muito importante também seria o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (ZARC). Uma ferramenta crucial para a agricultura brasileira, pois ajuda os agricultores a planejar o plantio e indicar as épocas de menor risco de perdas da produção por problemas climáticos — para culturas como soja, milho, algodão, entre outras commodities, orientando a expansão agrícola de acordo com a disponibilidade hídrica. Outra frente é a integração de dados de autorizações de desmatamento estaduais no sistema federal, essencial para distinguir o desmatamento legal do desmatamento ilegal.
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Além dessas medidas, deve-se buscar fortalecer a governança territorial com a destinação de terras públicas para proteção de povos indígenas e comunidades tradicionais, prever a criação de unidades de conservação, regularização fundiária de territórios coletivos, a exemplo de Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), bem como a implementação de instrumentos econômicos, como pagamento por serviços ambientais e cotas por área de vegetação nativa preservada ou em estado de recuperação. Assim, estabelecendo metas anuais e levando a cabo as medidas de monitoramento e transparência, todos esses instrumentos podem contribuir para reverter a tendência de alta no processo de degradação ambiental, bem como assegurar a conservação do lavrado, mantendo-o permanentemente como um importante patrimônio natural roraimense.
*Consultor ambiental, filósofo e escritor. Membro editorial da revista Biologia Geral e Experimental e coautor do livro “Vertebrados Terrestres de Roraima” (BGE); autor dos livros “À sombra do caimbé” e “Cem contos miúdos” (ambos no prelo).