OPINIÃO

KinoMakunaima 7: “Memória de um sanatório” traz às telas o tema do racismo e violência no extremo norte

Éder Santos

A afirmação positiva da imagem do indígena no Brasil é tributária de sua epistemologia, que por sua vez está centrada em sua ontologia. O Ser indígena tem na perspectiva biointegral e telúrica suas formulações de visões de mundo. Com a invasão dos não-indígenas nas terras de Abya Yala (chamada de América pelos invasores) o apagamento do outro se deu de forma violenta, progressiva e sistêmica. Assim, enquanto resistência, é pela territorialidade ancestral que os povos indígenas do Brasil e de países vizinhos afirmam a vida coletiva, seu Bem Viver.

A luta dos povos indígenas contra a imposição do linguicídio, que é a proibição da língua e contra a tentativa epistemicida de ignorar as ciências da floresta, não alcançaram êxito em sua totalidade, pois a força ancestral, somada as estratégias de sobrevivência são características de povos  que enfrentam até hoje as incursões de uma  expressão monocultural, configurada na hegemonia “eeuurocentrada”, neologismo proposto pelo saudoso geógrafo brasileiro, Porto-Gonçalves, que alude a crítica contra a imposição colonial epistêmica Norte Americana e Europeia sobre outros povos.

Sendo assim, a história do Brasil segue com muitas sombras sobre a postura do estado nacional em relação aos indígenas. O direito à memória é rechaçado com regularidade por esse mesmo estado nacional, fenômeno que exige dos povos afro-indígenas e seus aliados um trabalho monumental para trazer luzes aos episódios de violência e negação. O cinema é um instrumento de luta importante.

No documentário “Memória de um sanatório indígena: o que sobrou do esquecimento” (Curta, 2025), produzido com incentivos da Lei Paulo Gustavo (MinC), o diretor, antropólogo e artista plástico, Irmânio Sarmento Magalhães, entrecruza entrevistas com indígenas e especialistas sobre esse triste capítulo da história brasileira, com pesquisas realizadas no acervo documental e imagético do Museu Nacional dos Povos Indígenas, no Rio de Janeiro. Desta forma, trazer à tona a existência de um internato infantil feminino indígena e as mazelas que tal estrutura oficial promoveu é estabelecer novos marcos da luta indígena contra racismo e o preconceito estatal – uma luta de classes, mas sobretudo, uma luta de imagens que precisa de atenção do estado.

O diretor reúne qualidades e parcerias que permitem a produção de um curta com a potência que o tema exige, pois o mesmo é um ativo colaborador da causa indígena, com pesquisas sobre o patrimônio cultural junto às organizações indígenas e com estudos arqueológicos. A equipe cinematográfica dirigida por Irmânio Sarmento é decisiva na construção da bela narrativa documental que traz refinada direção de fotografia, paisagem sonora imersiva, fotografias de época, entrevistas e um mosaico cultural ambientado na região da terra indígena São Marcos, no estado de Roraima. A Terra indígena homologada em 1991, concentra os povos Macuxi, Taurepang e Wapichana, em terras do município de Boa Vista e Pacaraima, com demografia de aproximadamente 10 mil pessoas, uma região de lavrado (savana) e floresta. É uma das três maiores terras indígenas de Roraima, ficando atrás apenas da terra indígena Yanomami e Raposa Serra do Sol.

Do ponto de vista estético, “Memória de um sanatório indígena” é um curta filmado no estilo do “cinema direto”, que concentra-se em capturar a vida real com a filmagem no local e, em alguma medida, com a presença do cineasta fazendo as intervenções, em substituição a roteiros e cenários rígidos. O curta traz o inesperado na narrativa. A equipe demonstra a consciência autoral em ação mesmo quando as cenas se desenrolam, o que permite a sensação de espontaneidade. A voz over do diretor, com seus questionamentos, lembra o estilo do saudoso e premiado documentarista Eduardo Coutinho. A busca obstinada pela verdade lembra trabalhos ensaísticos do francês Chris Marker ou as explorações temáticas e críticas do americano Michael More e do brasileiro Sílvio Tendler, notadamente, com o autor em cena.

A entrevista final dentro de um veículo, sendo o diretor o próprio motorista eleva o grau de atenção da equipe na preocupação com o registro da narrativa, ou seja, desenho de som e fotografia envolventes dialogam com a tensão dada na fala de uma personagem indígena. Assim como Coutinho, a força fílmica está no método da história oral demonstrada. As fotografias de época aproximam o curta ao “documentário observacional clássico”, mas vai além – é pelo uso do silêncio dos frames que mostram as fotos de mulheres e meninas indígenas que o autor uniformiza a perturbação, o desconforto imagético que o tema propõe com as ausências, as injustiças e o autoritarismo estatal.

O conteúdo traz relatos de violência, mortes e traumas que acompanham o processo. A existência de cemitérios resultantes de possíveis agressões físicas, remete a ideia de “espaços topofóbicos” (as paisagens do medo, no sentido de Yi-Fu Tuan) que na espacialidade indígena tem um devir sagrado e perigoso, na qual não é permitido produzir roças, habitações, caças, coletas ou ter algum trânsito humano. Esse é mais um tipo de agressão ao território – um possível dano espiritual/imaterial (extrapatrimonial) passível de indenização, como aquela conquistada após o acidente do Boeing 737, ocorrido em 2006 no Mato Grosso, que vitimizou 154 pessoas que estavam a bordo do avião e cujos destroços afetaram a 1/6 do total da terra indígena do povo Mebêngôkre-Kayapó. O estado brasileiro, neste particular, foi o responsável pela instalação e manutenção do sanatório em Roraima, objeto do filme.

Voltando à narrativa estética do curta em tela, percebe-se ainda a herança de fases importantes do cinema italiano, com o neorrealismo pós-segunda guerra; do “cinéma vérité” francês (cinema verdade) com a luz natural que se impõe durante as gravações e; a estética do cinema novo brasileiro, fenômeno impresso nas imagens que traz a realidade com percepção crítica, sensível e sem mascaramento. Assim é “Memória de um sanatório” que, somado a revisão bibliográfica, o olhar arqueológico e a oralidade, permite ao espectador adentrar na T.I. São Marcos, nas primeiras décadas do século XX, para desenterrar os silêncios gritantes de uma tragédia social de larga escala.

O tema que tocou e perturbou os realizadores é o mesmo que deve mover o espectador a entender que falta justiça e a necessidade do direito à memória. O curta traz fios que reconstroem um tempo presente, de um país forjado na dor, nas ausências, portanto, mais que um curta, “Memória” constitui-se um “filme-tese”, uma vez que constrói com habilidade e método um argumento, demostrando as fases de um período tenebroso de nossa condição humana – ou desumana.

Éder Santos é doutor em Geografia Cultural, cineasta, jornalista, sociólogo e presidente da Associação Roraimense de Cinema e Produção Audiovisual Independente, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas (GEP Cultura/UNIR), membro associado da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP) e do Comitê Pró-cultura Roraima. E-mail: [email protected].

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