A canção “Se Eu Quiser Falar com Deus”, almeja ser um bramido (grito) frente às convicções acerca de Deus, descrevendo-o como hermético e desconhecido. De maneira sublime, a letra evidencia a relevância do silêncio e da solidão para entrar em comunhão com o criador.
“Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz”
A canção de Gilberto Gil propõe uma desafetaçãorigorosa como meio de alcançar o divino: apagar a luz, calar a voz, esvaziar as mãos. O vácuo ritualístico retumba (ecoa) o niilismo Nietzschiano, que declara “Deus está morto”, não com ar de festividade, mas como matriz diagnóstica de um mundo desencantado. Segundo o filósofo, o silêncio exaltado na busca de Deus a partir do nada, conforme aclama a canção do notório baiano, é fruto da ausência de sentido transcendental. Ao contrário, Nietzsche vê no nada a oportunidade de criar novos valores e aceitar a vida em sua imanência.
“Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios”
“Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus”
Exige-se da alma um estado de quietude, despreocupação e desapego em relação às aspirações, medos e angústias. A busca atemporal, ilógica e o desinteresse são condições essenciais para alcançar a Deus.
“Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou”
O referido trecho glorifica o sofrimento como via de elevação espiritual, reminiscente do ascetismo cristão que Nietzsche critica em “Genealogia da Moral”. Para ele, a resignação diante da dor é uma moral de escravos, que nega a vida em favor de um “além” ilusório. Em contraste, o filósofo propõe a amor fati (amor ao destino): abraçar a dor não para transcender, mas para afirmar a vida em sua plenitude caótica, vivendo sem garantias, martelando os ídolos e desejando ciclicamente, na imanência da própria vida, um eterno retorno, com todos os seus prazeres, dores, pensamentos e experiências, desafiando-se na criação de novos valores e na reformulação do sentido da vida.
Enquanto o escritor diagnostica seu tempo, o filósofo francês Gilles Deleuze, após ler a obra do alemão, põe-se a sistematizá-la em quatro formas de niilismo:
Niilismo negativo- predomina a negação dessa vida em nome de uma outra vida após a morte(transcendência). Ex: mundo inteligível das ideias de Platão, cidade de Deus de Agostinho, paraíso cristão;
Niilismo reativo- a razão científica que nasce reage contra a promessa de paraíso depois da morte, de tal maneira, quer construir, aqui mesmo, a felicidade – Ex: modernidade (período histórico onde se funda a ciência moderna) – o próprio iluminismo vai dizer que através da razão iremos construir o mundo melhor.
Niilismo passivo- Caracteriza-se pela falta de vontade e potência, pela resignação diante da falta de sentido da vida. Nem Deus, nem humano. Tudo cai, nada vale a pena pós-modernidade – ficamos angustiados com a ideia de que no mundo não existe um sentido.
Niilismo ativo- seria o niilismo de Nietzsche – reencontro do ser humano com a alegria de viver, sobretudo através da arte.
“Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração”
Ao exigir que o sujeito se torne “um cão”, lambendo o chão dos próprios sonhos, alegrando-se mesmo na ruína, Gil expõe uma autonegação, o que pressupõe o ápice do niilismo passivo — a rendição ao “nada” como consolo. Nietzsche, porém, defende um niilismo ativo: destruir os ídolos para que o homem, agora “além do bem e do mal”, possa se reconstruir como Übermensch (Super-Homem). Enquanto Gil se submete, Nietzsche incita a criar. Ambas as reflexões propostas, porém, partem do mesmo abismo — um para falar com Deus, outro para calá-lo definitivamente e, assim, ouvir finalmente a voz do homem.
Aproximar-se de Deus requer resiliência para com as dores e aniquilação do ser, pois o sofrimento nos eleva espiritualmente e nos conduz à frugalidade (humildade) existencial.
O sofrimento nos conduz à humildade. Para alguém que se aproxima de Deus, faz-se necessário reduzir-se ao nada. E ainda assim, sentir-se satisfeito
“Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar”
Nesse radar, não há espaço para paúra (medo intenso) e insegurança; por isso, devemos nos lançar em seus braços, confiando que ele irá nos sustentar.”
Trata-se de uma jornada de via única, apenas com ida, portanto, devemos nos despedir de tudo e, ao final, encontrá-lo, tomando consciência da fragilidade das convicções humanas diante de um Deus ilimitado.
“Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar”
“A estrada que ao findar vai dar em nada” repete-se obsessivamente no fim da canção, revelando o paradoxo da fé religiosa: o buscador passa a vida inteira procurando um sentido supremo, mas quando finalmente pensa tê-lo encontrado, descobre que todas suas certezas se desfazem. Nietzsche interpretaria esse “nada” como a realidade do mundo moderno, onde Deus deixou de ser uma referência – um vazio existencial onde o ser humano, em vez de se render ao desespero, precisa encontrar sua própria maneira de viver com liberdade e paixão.
Enquanto a jornada de Gilberto Gil termina num ciclo sem saída (pois o sagrado permanece inatingível), a proposta de Nietzsche é mais radical: é preciso “cair” nesse abismo de incertezas para, só então, renascer e criar novos significados para a existência.
Referências Bibliográficas
GIL, Gilberto. “Se Eu Quiser Falar com Deus” (Álbum: Extra, 1983).
DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia (1962).
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência (§125 – “O Louco”).
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral (Ensaio III: “O que significam os ideais ascéticos?”).
Prof. Weslley Danny – Doutor e Mestre, graduado em Filosofia, História, Letras, Biologia e Enfermagem. No que tange o segmento humanístico compila pós-graduações nas seguintes áreas: (ciência política), (filosofia, sociologia e ciências sociais), (ética e filosofia política) e (história e antropologia).