A violência urbana no Brasil deixou de ser apenas uma questão de segurança pública. Transformou-se, ao longo das últimas décadas, em uma linguagem cultural complexa, que molda comportamentos, define estéticas e influencia diretamente a identidade de parcelas significativas da população. O que antes era apenas crime, agora é também cultura — uma cultura construída, articulada e fortalecida ao longo de gerações.
A chamada narcocultura é prova disso. Longe de ser um fenômeno espontâneo ou recente, trata-se de uma construção simbólica que se desenvolveu por décadas, amparada por narrativas que romantizam o tráfico de drogas, a violência, a ascensão pelo crime e a ostentação como sinal de vitória pessoal. Essa cultura não nasceu de forma isolada: ela foi sendo plantada em meio ao abandono social, regada pela ausência do Estado e colhida em um terreno fértil de exclusão e vulnerabilidade.
Manifesta-se principalmente através da música, do audiovisual e da moda. Um exemplo emblemático é a transformação do funk proibidão — que narrava abertamente o cotidiano do tráfico — no chamado funk ostentação. Este último, apesar de aparentemente mais “leve”, cumpre função simbólica semelhante: vende aos jovens de comunidades pobres a ilusão de que o sucesso está diretamente atrelado ao consumo de bens de luxo, à exibição nas redes sociais e ao estilo de vida associado ao mundo do crime. Trata-se de uma falsa promessa que aprisiona mentes enquanto mascara uma dura e latente realidade: a ausência de oportunidades reais.
Esse cenário é agravado pela ideologia de facção, conceito definido pelo Coronel Mário Sérgio Duarte, ex-comandante da PMERJ, como um conjunto de valores e símbolos que estruturam a identidade coletiva de grupos criminosos. A facção, nesse contexto, não é apenas uma organização, mas um projeto de poder que oferece pertencimento, “justiça” própria, proteção e sentido de vida — elementos que deveriam ser entregues pelo Estado.
Nesses territórios dominados pela lógica da facção, surgem os chamados black spots — zonas onde o Estado é substituído pela autoridade do crime. Nessas regiões, criminosos não apenas impõem regras, mas exercem influência política e cultural, muitas vezes travestida de “solidariedade”. Doações, festas e proteção à comunidade são, na verdade, instrumentos de dominação e manipulação simbólica.
Essa realidade é duramente denunciada por Leonardo Giardin e Diego Pessi, em Bandidolatria e Democídio, quando alertam para a inversão moral presente no imaginário jurídico e social brasileiro. Para eles, a constante vitimização do criminoso e a relativização de suas ações criam uma cultura da impunidade e do esquecimento das vítimas (SOUZA; PESSI, 2018, p. 37). O resultado disso é uma sociedade onde o crime é glamourizado, o Estado é desacreditado e a juventude perde suas referências legítimas.
Além da dominação armada, o crime se impõe culturalmente. Por meio da estética da ostentação, do vocabulário próprio, da influência midiática e do entretenimento, a narcocultura se espalha como modelo de sucesso e poder. Ela ocupa o vácuo deixado pela educação pública falha, pela ausência de políticas culturais verdadeiras e pela falta de perspectivas reais para os jovens. E é exatamente isso que a torna tão perigosa: ela seduz, legitima e naturaliza o inaceitável.
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Para enfrentar esse cenário, é preciso ir além da repressão policial. É necessário reconstruir os vínculos sociais por meio da cultura legítima, da educação transformadora e da presença do Estado. Devemos fomentar narrativas que resgatem a dignidade, o trabalho honesto e a cidadania como caminhos possíveis e desejáveis. Enquanto o tráfico continuar sendo a maior vitrine de sucesso nas periferias, a bandidolatria continuará triunfando.
A cultura do crime é, acima de tudo, um problema simbólico. E por isso, sua desconstrução passa necessariamente pela disputa de imaginário. A criminalidade só se enfraquecerá quando o jovem de da comunidade voltar a acreditar que pode vencer sem precisar morrer ou matar para isso. Quando o herói da sua história não for mais o traficante do morro, mas sim o professor, o artista, o empreendedor ou o policial que resiste, dia após dia, com dignidade.
Lindomar Ferreira Sobrinho
Bacharel em Direito
Pós em mídias digitais
Capitão da PMRR