OPINIÃO

A sociedade brasileira e o complexo de vira-lata

Sebastião Pereira do Nascimento*

A expressão “complexo de vira-lata” ou “síndrome de vira-lata” não é uma expressão filosófica, mas sim uma expressão criada pelo jornalista brasileiro Nelson Rodrigues na década de 1950, no contexto da derrota da seleção brasileira para o Uruguai na final da copa do mundo de 1950. A derrota, ocorrida no Estádio do Maracanã, diante de milhares de torcedores, não apenas abalou o orgulho nacional, mas também simbolizou uma crise mais profunda de identidade e autoestima coletiva. Para Nelson Rodrigues, o complexo de vira-lata descrevia o sentimento voluntário de inferioridade que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face de outras nações, especialmente dos países desenvolvidos.

Essa mentalidade, bastante impregnada no imaginário do povo brasileiro, leva-o a enxergar o país como incapaz de competir de igual para igual com o resto do mundo, desvalorizando sua própria cultura, seu povo e suas realizações, acreditando que são, por natureza, inferiores às de outras culturas. O termo reflete a falta de autoestima e confiança do povo brasileiro e a constante busca por comparações externas, mesmo quando não há razões claras para essas comparações. Fragmentos do texto “A síndrome de vira-lata”, publicado na revista Insieme por Luiz Gustavo Scarpelli.

Originalmente, o termo “complexo de vira-lata” estava relacionado ao futebol, mas sua aplicação transcendeu o esporte e passou a ser usado como uma metáfora para diversas situações no Brasil contemporâneo. Diante dessa emblemática conceituação, alguns historiadores atribuem a síndrome de vira-lata a um complexo de inferioridade estruturado, decorrente de fatores históricos, econômicos e culturais, em grande parte derivados do passado colonial e da então posição periférica do Brasil no contexto global. Essa percepção sempre foi alimentada por desigualdades sociais, sucessivas crises econômicas e recorrentes comparações com países tidos como de primeiro mundo, apreciados como modelos de desenvolvimento e modernidade.

Essas raízes históricas, que podem ser encontradas na literatura do período colonial do Brasil, impuseram uma lógica de inferioridade ao povo brasileiro, a partir de quando a elite tupiniquim, dominada pelo modelo de vida europeu, passa a usufruir da ideia, sujeitando-se à dominação completa dos países do velho mundo. Portanto, esse complexo de inferioridade reforça o juízo de que o Brasil é um país pouco desenvolvido, devido à falta de autoconfiança e à constante busca por uma comparação externa que associa o país à precariedade, ao atraso e à falta de sofisticação.

Ainda no contexto histórico, em relação ao complexo de vira-lata, algumas fontes literárias indicam que a ideia dos brasileiros como sujeitos inferiores surgiu no século XIX, quando o conde francês Arthur de Gobineau desembarcou no Brasil por volta de 1845. Segundo o conde, os cariocas eram comparados a “verdadeiros macacos”. Além dele, o sociólogo Francisco de Oliveira Viana (1883-1951); o médico e eugenista Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e Monteiro Lobato (1882-1948) defendiam, de forma separada, a supremacia branca, afirmando que a miscigenação era a causa dos males no Brasil. Monteiro Lobato, além do racismo, mostrava um pessimismo muito grande em relação ao povo brasileiro. Nas suas próprias palavras, “o brasileiro era um tipo imprestável que não conseguiria crescer sem o apoio de uma raça pura”. Também acreditava que viver nos trópicos, no clima quente e úmido, colaborava para a preguiça do povo brasileiro. Logo, o determinismo geográfico apontava que apenas civilizações “dignas” poderiam sobreviver em clima temperado. Ao contrário desses autores, o médico e ensaísta Edgard Roquette-Pinto (1884-1954), conhecedor profundo das coisas do Brasil, alegava que era a ignorância do Brasil e não a sua miscigenação a fonte de nossa inferioridade. Texto adaptado de “Complexo de Vira-lata: significado e exemplos”, acesso: www.psicanáliseclinica.com.

Noutro enquadramento, a xenofobia interna no Brasil, marcada pelo preconceito entre diferentes regiões, também reflete profundas desigualdades históricas, culturais, sociais e econômicas. Esse preconceito pode assumir estereótipos, aparentemente inofensivos, praticados por pessoas das regiões mais abastadas do país em prejuízo das regiões mais pobres, caracterizando aquilo que o antropólogo Sérgio Buarque de Holanda chama de povo “cordial”, em que muitas das manifestações de violência social vêm disfarçadas de “hospitalidade” e “afeto”.

Tudo isso contribui para a desvalorização dos valores nacionais, levando o sujeito ao complexo de inferioridade e até mesmo à resistência a reconhecer avanços no cenário doméstico. Conforme essa pessoa perde o orgulho pelo que é seu, ela começa a admirar mais o que vem de fora — algo tão em evidência atualmente — a exemplo da obsessão pelas coisas estadunidenses. Algo que vai além do gosto pela música, pelo cinema, pelas viagens à Disney, etc, chegando à obsessão pelo idioma inglês, muitas vezes deixando de aprimorar ou até desprezando a língua materna.

Por outro lado, não tem nada de errado em gostar de coisas que vêm de fora. Mas o problema aparece quando a pessoa começa a ignorar ou desvalorizar sua própria cultura. Neste contexto, uma ilustração que se alinha perfeitamente ao complexo de vira-lata é o uso da língua inglesa, tradicionalmente constituída no Brasil como um componente obrigatório no currículo escolar nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Algo que evidencia a valorização da língua estrangeira em detrimento, por exemplo, da língua Tupi — base para a criação do idioma nacional —, originalmente falada pelos povos Tupinambá, que se tornou a língua mais pronunciada no Brasil colonial e que deu origem a variantes da língua portuguesa falada no país.

Soma-se a isso a frenesi do brasileiro atribuir antropônimos de origens inglesas aos seus semelhantes ou adicionar letras no próprio nome, com intuito de dar um caráter estrangeiro, em especial derivado da língua interna estadunidense. Essa prática se amplia também em condutas que vão desde a idolatria por tudo o que é estadunidense ou europeu até a rejeição ou desprezo pelo que é nacional. Isso inclui a resistência a reconhecer avanços no cenário doméstico — atitudes que sempre intensificam o sentimento de inferioridade.

Outra coisa é a tendência de usar topônimos em inglês em lugares e ambientes comerciais/empresariais, em desvantagem da cultura regional ou do idioma nacional. Algo que comumente prejudica o lugar e o estabelecimento, especialmente quando o termo passa a ridicularizar a sua identidade visual ou se o símbolo, logomarca, letreiro, etc é usado apenas por questão estética ou para aparentar estar “modernizado”. O uso excessivo ou inapropriado de topônimos em inglês, sem que o público compreenda o nome, pode gerar confusão entre consumidores ou até mesmo transmitir uma imagem negativa sobre a empresa. Mais do que a tentativa de se alinhar a padrões estrangeiros, isso confere aos brasileiros uma falsa sensação de status e modernidade, ao mesmo tempo em que está se apequenando e apequenando o país diante de algo que muitas vezes não, necessariamente, é o melhor.

Aqui, cabe ressaltar que toda essa inclinação de se pensar incapaz e inferior aos outros, mais do que nunca segue fazendo o Brasil parecer um país limitado, além de destruir a autoestima demuitos brasileiros, incluindo um coletivo de monstros extremistas que vivem a conspirar contra o próprio país e que adoram ser marcados a ferro quente e ouvir o tinir das correntes no seu pescoço, quando se comportam como verdadeiro sabujos diante de autoridades estadunidenses que nunca esconderam seu desprezo pelo povo latino-americano — verdade seja dita, no Brasil, há um contingente da população que sempre se dispõe a ser subserviente e defensor de países ameaçadores que, como os EUA, buscam de várias maneiras restaurar a dominação colonial.

Para enfrentar essas questões, é essencial promover uma narrativa de orgulho e resiliência e valorizar a identidade brasileira, desconstruindo os estereótipos ligados à percepção de superioridade estrangeira. É necessário ainda combater as desigualdades sociais e regionais, que são uma das causas que alimentam o preconceito. Resgatar o orgulho pela pluralidade da cultura brasileira é fazer reconhecer que o valor do país está em sua diversidade interna e não na sua comparação com o mundo externo. A desconstrução dessas barreiras é um passo fundamental para uma sociedade mais inclusiva e consciente de seu próprio valor. Assim, no momento em que nos livrarmos do complexo de vira-lata, nós precisamos também nos libertar do complexo de colonizado. Isso deve ser o dever moral de todos os brasileiros.

*Filósofo, escritor, consultor ambiental e professor.

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