*Francisco Xavier M. de Castro
Num país vasto e continental como o Brasil, com enormes desafios relacionados à fiscalização e ao guarnecimento de suas fronteiras e divisas estaduais, as facções criminosas encontram inúmeros cenários propícios para expansão de suas atividades. Das tríplices-fronteiras das regiões norte, centro-oeste e sul, por onde entra a cocaína produzida nos países andinos para abastecer o mercado brasileiro e europeu, até o imenso litoral atlântico que abriga os principais pólos turísticos do nordeste, nada escapa ao ímpeto insaciável do crime organizado. Esse fenômeno de expansão e fortalecimento da criminalidade ganha o nome de “interiorização” do crime organizado.
Recentemente, uma das facetas da interiorização do crime organizado ganhou destaque em razão da atuação marcante das facções nos principais pontos turísticos do litoral nordestino, especialmente, em localidades com maior relevância no turismo nacional, como Porto-de-galinhas (PE), Pipa (RN) e Jericoacoara (CE).
O domínio de alguns pontos turísticos do nordeste pelas organizações criminosas vem se notabilizando como uma eficiente estratégia para a ampliação de atividades como o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro, tudo isso facilitado por um cenário caracterizado pelo intenso fluxo de pessoas com alto poder aquisitivo.
Não bastasse isso, é nesse contexto que o crime organizado também incrementa seus ganhos com a extorsão de comerciantes, além do aliciamento de agentes do estado. A lavagem de dinheiro do crime ocorre através de empreendimentos comerciais abertos sob uma aparente roupagem lícita, com atuação, por exemplo, no mercado de locação de imóveis e de veículos.
Nas principais praias do litoral nordestino, já não é novidade que o roubo e o furto contra turistas são proibidos pelas próprias facções que dominam aqueles territórios. A intenção dessa proibição também não é surpresa pra ninguém: evitar que ocorra a evasão do turismo e a consequente diminuição da economia que o tráfico de drogas movimenta nesses destinos paradisíacos.
Contudo, a constatação de um lamentável paradoxo é inevitável. Enquanto que para os turistas essas limitações impostas pelo “poder paralelo” representam a garantia para se desfrutar as férias com “paz e tranquilidade”, para os moradores dessas localidades a realidade é bem diferente. As facções locais que, normalmente, mantêm fortes vínculos com as grandes facções do sudeste brasileiro, além das práticas acima mencionadas, também impõem uma verdadeira lei do silêncio à população nativa. O terror disseminado pelos criminosos, traduzido em assassinatos e decapitações, é conhecido por todos que ousam desobedecer as ordens do crime organizado.
As facções que subjugam essa importante parte do litoral turístico nordestino reproduzem o modus operandi da “territorialização” do crime empreendido pelos grupos milicianos cariocas, através da imposição da violência e de regras de convivência à população, quando, por exemplo, a autorização de eventos nas comunidades depende da anuência direta dos criminosos, assim como a resolução de disputas locais e de outras intervenções são feitas pelas facções que visam substituir a real presença do estado naquelas localidades.
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No campo de batalha que o estado brasileiro passa a travar contra a criminalidade organizada, está a disputa direta pela legitimidade e pelo monopólio da governança territorial. Trata-se de um esforço que deverá consistir na viabilização de estratégias específicas a cargo de não apenas uma instituição, mas de toda uma rede coordenada de órgãos, corporações e atores imbuídos do mesmo objetivo. São exemplos desse conjunto de estratégias:
- Interrupção do fluxo financeiro das organizações criminosas, como o que foi realizado no dia 28 de agosto de 2025, na que foi considerada a maior operação coordenada contra o crime organizado no Brasil, quando a estrutura financeira do PCC, constituída por dezenas de fundos de investimento, centenas de fintechs e de uma rede de postos de combustível foi asfixiada pelo poder público, simultaneamente, em oito estados brasileiros. Essa estrutura chegou a movimentar mais de 50 bilhões de reais para a facção paulista, confirmando que o tráfico de drogas deixou de ser a principal receita daquela organização criminosa.
- Atuação conjunta de forças estatais e da sociedade organizada, com uso massivo da inteligência estratégica e foco em soluções intersetoriais que viabilizem a desarticulação de esquemas criminosos cuja etapa final é o domínio de populações menos favorecidas.
- Enfrentamento rigoroso à corrupção de agentes públicos, com o fortalecimento e autonomia das corregedorias institucionais, bem como com o incremento (aumento) das penas impostas aos desvios de conduta de servidores públicos, pois a interiorização do crime só é possível graças à participação direta e à facilitação de servidores públicos encarregados pela fiscalização e aplicação da lei.
- Promoção de políticas públicas consistentes que permitam que o estado verdadeiramente ocupe os vácuos de poder à medida que avança na desmobilização da estrutura do crime organizado, reconquistando os espaços outrora dominados pelos criminosos, seja através de uma segurança pública de qualidade, como através da acessibilidade e celeridade do sistema de justiça, do provimento da educação, da saúde e da oportunidade social para as comunidades mais vulneráveis.
Desse modo, o objetivo prático do Estado deverá ser o de se tornar a opção mais confiável e vantajosa para o cidadão que ainda hoje perece sob o poder arbitrário das facções criminosas e seu regime de terror e medo.
*Coronel da ativa e ex-comandante-geral da Polícia Militar de Roraima.
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