Ronildo Rodrigues dos Santos
Cientista Social
Os principais arraiais que acontecem em Boa Vista já encerraram, mesmo assim quero deixar aqui minha indignação, preocupação e provocação à Prefeitura de Boa Vista e à Câmara de Vereadores, e uma reflexão à sociedade sobre um tema que se repete ano após ano: a cobrança ilegal por estacionamento em vias públicas durante grandes eventos, especialmente por parte de flanelinhas e guardadores informais.
Trata-se de uma prática comum, repetida à exaustão e, infelizmente, naturalizada. Em festas populares e eventos de grande porte, é quase impossível estacionar nas imediações sem ser abordado por alguém que “organiza” a rua com cones, faixas, galões ou pedras, exigindo entre R$10 e R$50 por uma vaga que, em tese, deveria ser gratuita e de uso público. A rua é ocupada como se fosse um território privado, o que representa uma ocupação irregular do espaço urbano. Não há concessão, autorização legal ou fiscalização efetiva que legitime esse tipo de apropriação.
O problema se agrava com a simulação de formalidade. Em muitos casos, os flanelinhas apresentam talões improvisados, camisetas com cores padronizadas ou se identificam como parte de uma suposta “organização” local. Isso confunde os motoristas, muitos dos quais acreditam estar pagando uma taxa oficial ou contribuindo com algum projeto comunitário. A falsa aparência de legalidade máscara o caráter ilícito da cobrança e esvazia a responsabilidade do poder público em esclarecer a população.
Mais grave ainda é quando esse ambiente de aparente normalidade encobre possíveis extorsões e ameaças. Muitos motoristas, especialmente mulheres, idosos e pessoas sozinhas, sentem-se coagidos a pagar a “taxa de segurança” para evitar retaliações ou danos ao veículo. A cobrança, nestes casos, não é um pedido é uma imposição disfarçada. A rua, que deveria ser um espaço de todos, transforma-se em zona de medo e insegurança, regulada por uma lógica de dominação não oficializada.
A obstrução do espaço urbano é visível: cones, cordas, cavaletes e outros objetos improvisados bloqueiam a livre circulação, reduzem a mobilidade, geram engarrafamentos e desrespeitam o princípio da rua como bem coletivo. Não se trata apenas de uma questão de estacionamento, mas de uso da cidade. Quando o espaço público é privatizado por interesses informais e às vezes até criminosos quem perde é o direito à cidade, o acesso democrático aos bens urbanos.
Como cidadão local vejo aí um reflexo perverso do processo de informalização da economia e do desmonte das políticas públicas urbanas. A ausência de fiscalização e a conivência velada da gestão municipal resultam em impunidade e estímulo à informalidade. O silêncio das autoridades sinaliza tolerância e legitima a ação desses grupos. Ao mesmo tempo, não oferece alternativas dignas para pessoas que, muitas vezes, encontram nesse trabalho uma forma de sobrevivência diante da exclusão econômica.
É importante dizer: o problema não está apenas nas pessoas que atuam como flanelinhas muitas em situação de vulnerabilidade. O problema está na ausência de política pública de ordenamento do espaço urbano, na falta de alternativas de renda, na omissão da Prefeitura e na inoperância da Câmara de Vereadores diante de um fenômeno que se repete em todas as festas populares da cidade.
A própria Superintendência Municipal de Trânsito (SMTRAN) divulgou alertas reforçando que a cobrança por vagas em via pública é ilegal e não deve ser acatada. Mas qual a eficácia de uma nota pública se, na prática, nada é feito para coibir a ocupação irregular? Quantos agentes de trânsito estavam, de fato, nos arredores dos grandes eventos fiscalizando e protegendo o direito coletivo? O alerta vira letra morta diante da omissão prática.
Além dos danos imediatos, a situação gera conflitos e transtornos: brigas por vaga, discussões entre motoristas e flanelinhas, disputas entre os próprios guardadores informais, insegurança generalizada. A cidade vive, nesses momentos, um estado de exceção informal, onde regras mínimas de convivência são substituídas por arranjos precários, tensionados por violência simbólica ou direta.
É urgente que se pense em alternativas de regulação que não se resumam à repressão. A criminalização pura e simples dos flanelinhas é uma resposta limitada e contraproducente. Precisamos de um projeto urbano que contemple inclusão socioeconômica, planejamento participativo e revalorização do espaço público. Isso inclui criar estratégias que garantam o uso democrático do espaço urbano, gerar empregos formais na área de mobilidade e estabelecer diálogo com comunidades vulneráveis.
A cidade que queremos não pode ser refém de práticas abusivas, tampouco cúmplice da exclusão. Boa Vista precisa ser pensada como espaço de justiça urbana, onde o direito à cidade seja garantido a todos, e não capturado por interesses privados — sejam eles informais ou institucionalizados.
Que o fim dos arraiás sirva de alerta: o problema não termina com a festa. Ele segue latente, à espera do próximo evento. E a omissão, nesse caso, também é escolha política.