Há 26 anos, no dia 13 de julho de 1990, era criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fruto da lei 8.069. O ECA é considerado um marco na proteção da infância e tem como base a doutrina de proteção integral, reforçando a ideia de prioridade absoluta da Constituição de 1988. No estatuto estão determinadas questões como os direitos fundamentais da criança e do adolescente, as sanções de quando há prática de ato infracional, quais órgãos devem prestar assistência e a caracterização de crimes contra a criança.
No dia de aniversário do Estatuto, a Folha revela um número preocupante. De acordo com o promotor da Vara de Infância e Juventude do Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR), Ricardo Fontanella, até o final de junho deste ano foram registradas quase 600 medidas socioeducativas. Dentre essas, 109 eram de internação no Centro Socioeducativo (CSE) por se tratar de medida de regime fechado. Em relação ao ano passado, quando foram registradas 500 medidas, com 60 internados, houve um aumento de cerca de 81% de adolescentes recolhidos por atos infracionais graves, como assalto, roubo à mão armada, homicídio e tráfico de drogas. Cerca de 90% desses jovens são do sexo masculino.
“O ECA vem na proteção da defesa de direitos. Houve um grande avanço na proteção dos direitos das vítimas, mas muito precisamos avançar ainda. A ideia é que a rede de proteção, que atua desde o conselho tutelar, delegacia, promotoria e conselho de direitos do Estado e município, precisa trabalhar de forma integrada e junto à família”, relatou.
Conforme o artigo 227 da Constituição Federal, cabe à família, sociedade e ao Estado a proteção integral das crianças e adolescentes com prioridade absoluta. “A Constituição implica que a criança está acima de tudo, independente do profissional. A nossa lei é muito bonita e o ECA vem com essa reafirmação de direitos e proteção, mas ainda não é suficiente”, afirmou.
O adolescente em conflito com a lei pode responder pelos atos por meio de medida de regime aberto, quando há ameaça e não há violência, prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida, em que um profissional responsável acompanha o jovem mensalmente para saber se ele está frequentando a escola, se está trabalhando de forma ilegal, se cumpre com as tarefas e obedecendo aos pais. O juiz é informado por meio desse relatório.
Roraima possui 18 conselhos tutelares, sendo três na Capital, Boa Vista. Conforme a legislação, para cada 100 mil habitantes precisa-se de um conselho. Segundo Fontanella, os conselhos precisam funcionar adequadamente porque o conselho é o primeiro que atende as vítimas de violência, omissão e risco pessoal e social. “Nós temos cerca de 200 mil habitantes, então temos um conselho à frente, isso mostra que o poder público está atuando na área. Há muitas crianças fora da escola, criança na rua e criança precisando de atendimento médico. De certa forma, demos um avanço até certo ponto, mas precisamos de mais”, disse.
No Estado, há a implementação e funcionamento dos conselhos de direito estadual e municipal, que fiscaliza os conselhos tutelares cobrando condições e encaminha políticas públicas e necessidades de crianças e adolescente para que os poderes Executivo e Legislativo possam adotar essas políticas, os planos de enfrentamento à violência sexual, determinado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, sendo uma das 18 ações políticas do MP, e a proteção e erradicação do trabalho infantil, que, de acordo com o promotor, é uma participação do MPRR junto ao Ministério do Trabalho.
“Muitas vezes a criança sai da sala de aula para ajudar o pai a trabalhar em feira ou estacionamentos a fim de aumentar a renda familiar, uma vez que os pais estão desempregados. Temos casos aqui na cidade de crianças com menos de 12 anos que trabalham em estacionamentos de festas, à noite. Temos que enfrentar isso e não só o MPRR, mas toda a rede de proteção, seja denunciando ou, mais importante ainda, conscientizando essas famílias de que o lugar de criança é na escola”, frisou.
Conforme a legislação, a criança até 12 anos não pode trabalhar, e até os 16 pode atuar como aprendiz. Acima dos 16 ela pode trabalhar, desde que não seja no período noturno, insalubre e perigoso. Em Boa Vista, o MPRR tem centenas de representações contra pais que deixam filhos trabalhando, tirando-os da escola, e que respondem na justiça da infância um processo.
Um dos principais pontos do Estatuto é a proteção integral. Segundo o promotor Ricardo Fontanella, um dos autores do ECA é o promotor Paulo Garrido, de Minas Gerais. “Ele disse que na África, quando uma criança corre perigo, toda a aldeia para, ninguém dorme ou come. É um exemplo que temos que dar, uma atenção maior a essas crianças”, citou.
No início do século 21, nos EUA, onde aconteceu o primeiro tribunal de atuação aos direitos da criança, a vítima não tinha como se defender. “Foi preciso uma sociedade protetora dos animais entrar com uma ação para defender a criança. Hoje não temos diferença entre adultos e criança como antigamente, todos são sujeitos de direitos e obrigações. A criança tem até mais direito que o adulto hoje, só que precisamos fazer funcionar”, relatou.
Outro ponto destacado pelo promotor Fontanella foi a proteção interna. Se a criança não está indo para a escola ou se se envolveu com drogas, a própria família tem como tomar medidas. Contudo, quando ela sai de casa ou foge, há a rede de proteção externa. Nesse caso, o Estado tem a obrigação de levar essa criança para um abrigo ou, se ela estiver em conflito com a lei e estiver entre 12 e 18 anos, é levada ao CSE.
Uma vez internados, os jovens estudam, praticam esportes, participam de cursos profissionalizantes, alimentam-se adequadamente e tomam medicação, se necessário, tendo todo o apoio para que saia melhor do que quando entrou. O tempo de internação é determinado pelo juiz e varia de acordo com o ato infracional cometido.
“Ele pode pegar até três anos de internação, mas é avaliado a cada seis meses. Se ele apresenta bom comportamento ou se está contribuindo, pode progredir a uma medida mais branda, como regime meio aberto, semi-liberdade ou liberdade assistida”, relatou Fontanella. A ideia é fiscalizar para que o infrator frequente a escola, tenha acompanhamento no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e que não se envolva com drogas. Por essas razões, há um agente socioeducador que o acompanha para fazer relatório e encaminhá-lo ao juiz.
Em todo o
Estado, apenas Boa Vista possui um CSE. “Na teoria, cada município deveria ter um, mas infelizmente precisa de investimento, porque o ideal é que, de alguma forma, ele fique perto da família para que ele interaja para poder voltar. Não temos prisão perpétua, então um dia ele vai sair. Dessa forma, precisamos aperfeiçoar essa fórmula de tratamento, senão ele reincide”, disse Fontanella.
Até a presente data, foi constatado um índice de 40% de reincidentes entre crianças e jovens em Boa Vista. Segundo o promotor, esse número já foi maior, apesar de ainda ser alto. O MPRR não trabalha só com adolescentes em conflito com a lei, mas também com crianças em risco pessoal ou social que precisam da rede porque estão sendo vitimizadas e exploradas por familiares ou na rua.
“O ECA deve ser um farol de proteção e de garantia de direitos para que essas vítimas possam estudar, ter tratamento médico e qualidade de vida. Existe essa rede de proteção, mas ainda não está bem engrenada. O MP, hoje, está com dois promotores e temos a intenção de ter mais técnicos, pedagogos e assistentes sociais”, afirmou.
TRÂMITE – Para o caso de denúncias, há o Disque 100, número nacional. Durante a ligação, que pode ser anônima, são recolhidas todas as informações necessárias e, em seguida, são encaminhadas com cópia ao MP e também à polícia, dependendo da situação.
De acordo com Fontanella, o próximo passo é realizar a averiguação. Dependendo da situação, o juiz é informado na hora e essa vítima pode ser levada direto a um dos três abrigos do Estado. “O juiz ou o próprio conselheiro pode tomar esta medida. Ele então aciona o MP e nós tomamos as medidas cabíveis, como tirar a guarda do pai e da mãe, se for o caso, procurar uma família substituta, com algum familiar próximo, ou uma família extensa, por meio de adoção”, relatou.
PANFLETAGEM – Hoje, a partir das 7h, haverá panfletagem em frente à Catedral Cristo Redentor, no Centro da Capital. Segundo o presidente da Associação de Conselheiros e Ex-conselheiros do Estado de Roraima, Adiuilson Ribeirto, a panfletagem tem o objetivo de conscientizar a população a respeito de direitos violados. “Tivemos muitas conquistas, mas infelizmente há muita violação de direito, como abuso sexual de responsáveis legais, agressão, negligência, maus-tratos e trabalho infantil”, disse. (A.G.M)