O Município de Boa Vista, responsável pelo Tratamento Fora de Domicílio (TFD) para crianças de 30 dias de vida para até 15 anos incompletos, paga ajuda de custo de apenas R$ 49,50 para o paciente e seu acompanhante, e R$ 24,75 para a criança que viaja sozinha, valores muito abaixo daqueles alguém de fato gasta quando se hospeda e alimenta-se durante uma viagem.
Uma liminar de autoria do Ministério Público Federal (MPF), em 17 de janeiro de 2013, corrigiu os valores para R$ 89,50 com acompanhante e a R$ 64,75 sem acompanhante, para todas as faixas etárias do TFD, devido à inflação. Mas o Município de Boa Vista até hoje não a cumpriu, fazendo com que as crianças, que dependem da Prefeitura, corram risco de vida.
No texto da liminar de 2013, o MPF diz que estes valores de R$ 49,50 e R$ 24,75 estavam previstos para hospedagem e alimentação, sendo que os próprios juristas explicam que eles não são suficientes nem mesmo para a hospedagem. O MPF calculou o novo valor através do índice de inflação, do salário mínimo na época (R$ 678,00) e de depoimentos dos próprios pacientes, que relataram os seus verdadeiros gastos durante as viagens.
Além da correção, o órgão determinou que Estado e municípios são obrigados a pagar a ajuda com pelo menos três dias de antecedência, e pagar as passagens de volta com até três dias do fim do tratamento. O município e o Estado recorreram, mas em sentença do MPF do dia 5 de fevereiro de 2015 consta que os valores continuam valendo.
O vendedor Evaldo Franco Marson adotou um bebê, hoje com 11 anos. Tendo como pais biológicos moradores de rua viciados em álcool e drogas, e portadores de doenças, a criança nasceu com graves deficiências: não escuta do lado esquerdo, ouve pouco do lado direito, precisa de óculos especiais e sofre de Distrofia Miotônica de Steinert, doença degenerativa que compromete toda a musculatura, incluindo a caixa torácica e provocando a perda de locomoção.
Apaixonado pelo filho, Evaldo Franco Marson morava em São Paulo e veio para Boa Vista porque o clima é mais adequado à saúde do menino. Mas ele precisa levá-lo com frequência a Campinas (SP), mais precisamente para os laboratórios da Universidade de Campinas (Unicamp), que, em parceria com o Instituto de Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), oferece cirurgias, próteses e outros tratamentos para o pequeno.
Ele utiliza o TFD há três anos, mas o dinheiro disponibilizado pela Prefeitura nunca foi suficiente para pagar tudo. “O que você faz com R$ 49,00 com uma criança dentro de uma cidade com 1.900.000 habitantes? Só a diária de um cortiço lá é, no mínimo, R$ 80,00, sem a alimentação. O recurso é todo utilizado e ainda falta. Apesar de a minha vida financeira ficar uma bola de neve por causa disso, eu e minha mulher temos conseguido ficar com tudo em dia”, disse.
Na sua última viagem, ele só tinha R$ 100,00 no banco, faltando pouco tempo para o embarque, no dia 12 de julho deste ano. Então, no dia 28 de junho, ele pediu o que é seu por direito: o pagamento de metade do TFD com um dia de antecedência. O dinheiro só foi enviado para a sua conta 15 dias depois, quando ele e a criança já estavam em Campinas. “Eles nos jogam dentro de outro Estado sem dinheiro, só com a passagem, passando necessidade e praticamente dizem: ‘Se virem!’. Nós ficamos abandonados. Gastei mais de R$ 4 mil. Eles só mandaram as diárias porque escrevi um e-mail com o assunto ‘abandono de paciente em TFD’”, relatou.
Após um ano esperando na fila do Sistema Único de Saúde (SUS) por exames e consultas importantes para seu filho, ele conseguiu vaga no dia 1º de novembro, também na Unicamp. “Meu filho vai fazer uma cirurgia de implante de cóclea no ouvido, e em novembro vão fazer uma avaliação para marcar esta cirurgia”, relata. Além da avaliação, estão marcadas consultas com ortopedista e pneumologista.
Mas ele foi impedido de viajar. Uma funcionária da Prefeitura de Boa Vista lhe pediu, no dia 19 de outubro, um reembolso de R$ 297,00 por terem enviado dinheiro a mais para a família na sua viagem de julho. “Eu falei na época: ‘Está difícil devolver agora, eu tenho que comprar medicamentos, pagar fisioterapia, minha esposa é funcionária do Estado e ainda não recebeu o pagamento dela, temos contas para pagar, eu sou vendedor e os meus clientes dependem de contracheque. Ela respondeu: ‘Se não pagar, não viaja’. Eu falei: ‘Mas uma coisa não tem a ver com a outra’”, explicou.
Revoltado, o homem mostra um protocolo do MPF do dia 26 deste mês, em que denuncia o descaso da Prefeitura de Boa Vista. “O atendimento para crianças é diferente para os adultos. Eles recebem o valor da liminar. Isso é um crime, estão ferindo o Estatuto do Deficiente e o da Criança e Adolescente. Crianças estão morrendo”, protestou.
Ele aproveitou para fazer um convite para que outras pessoas em iguais condições entrem em contato para uma ação judicial coletiva: “O meu telefone e WhathsApp é 9913-35809. Quem também utilizar o TFD pelo município pode me procurar, pois estou montando um grupo para entrarmos na Justiça e trocarmos informações”, disse.
RESPOSTA – A Prefeitura de Boa Vista falou que é responsável pelo TFD de crianças de 30 dias de vida até 15 anos incompletos. Confirmou que a ajuda oferecida é de apenas R$ 24,75 para paciente sozinho e R$ 49,50 para paciente e acompanhante.
“O responsável pelo paciente assina um Termo de Compromisso assumindo que irá prestar contas de todos os valores recebidos e dias contabilizados. Não é autorizada a viagem sem a assinatura do Termo. Os dias além do previsto devem ser pagos pela Prefeitura, mas se houver diárias sem necessidade, o paciente é quem deve restitui-las para o Fundo Municipal de Saúde”, frisou.
Conforme a nota, o responsável tem 10 dias após a volta da viagem para mostrar os relatórios médicos originais, os bilhetes de passagens e cartões de embarque. Se não o fizer, ele perde o TFD vigente e não pode conseguir outro.
Sobre o paciente mencionado na matéria, a Prefeitura confirma o agendamento da viagem para o dia 1º de novembro e repete que aguarda a sua prestação de contas. “Conforme a resolução da CIB e o termo assinado, a não prestação de contas implica diretamente no cancelamento do TFD. A Prefeitura tem trabalhado com seriedade para manter em dia as diárias de todos os pacientes em TFD, e acredita que compromissos devem ser honrados de ambas as partes”, complementou a nota.
HISTÓRICO – Instituída em 1999 pelo Ministério da Saúde para pacientes do SUS, a modalidade TFD (Tratamento Fora de Domicílio) paga passagens, diárias e demais custos que os usuários e seus acompanhantes tenham. O dinheiro vem da União, que o repassa para os Estados.
Em Roraima, a Secretaria de Saúde decidiu em 2008, atrav&ea
cute;s da Comissão Intergestores Bipartite (CIB), que repartiria a responsabilidade da TFD com os municípios, ficando com as prefeituras o cuidado com os menores de 15 anos. (NW)