A recente venda da Mineração Taboca, controladora da Mina de Pitinga (AM), para uma estatal chinesa reacendeu discussões sobre soberania nacional, exploração de minerais estratégicos e os riscos de perda de controle sobre recursos como urânio e terras raras. O geólogo Salomão Cruz, um dos descobridores da jazida na década de 1970, detalhou em entrevista ao programa Agenda da Semana os bastidores da descoberta, as fragilidades na fiscalização e os interesses geopolíticos envolvidos.
A descoberta e a polêmica da perda da mina
Salomão Cruz relatou que a Mina de Pitinga foi identificada em 1978 durante trabalhos da CPRM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais), onde atuava como geólogo. “Encontramos anomalias de estanho em rochas graníticas no igarapé Água Boa, região do rio Pitinga. O relatório foi enviado à CPRM, mas o requerimento de lavra demorou 30 dias para chegar a Brasília. Treze dias antes de ser protocolado, a Taboca, do grupo Paranapanema, já havia registrado a área”, explicou. Segundo ele, há indícios de que informações internas vazaram para o grupo privado.
A mina, que começou a ser explorada em aluvião (depósitos sedimentares) apenas em 1982, só passou a extrair minério da rocha bruta a partir de 2014. “O corpo mineralizado tem cerca de 400 km², com cassiterita (minério de estanho), mas também nióbio, terras raras e urânio”, afirmou Cruz.
Urânio e o risco de evasão de minérios estratégicos
O geólogo destacou que a cassiterita explorada em Pitinga tem teor de 70% de estanho, enquanto os 30% restantes contêm minerais associados, como urânio. “O Brasil tem 900 mil toneladas de reservas de urânio conhecidas, sendo um terço só em Pitinga. Mas o país não prioriza sua exploração há décadas”, disse.
A preocupação, segundo Cruz, é que o rejeito do beneficiamento da cassiterita – que concentra urânio e terras raras – possa ser enviado para o exterior sem controle. “Por lei, a exploração de urânio é monopólio da Indústrias Nucleares do Brasil (INB), e sua comercialização é restrita. Mas, desde 2022, uma medida provisória do governo Bolsonaro permitiu que empresas privadas explorem o mineral, desde que em parceria com a INB. O risco é que, se o rejeito for enviado para São Paulo ou exterior para processamento, esses subprodutos estratégicos sejam desviados”, alertou.
Interesses chineses e infraestrutura logística
A venda da Taboca para a estatal chinesa em 2024 – por R$ 2 bilhões, equivalente a dois anos de faturamento da mina – ocorre em um contexto de expansão da China na América Latina. Cruz citou o controle chinês sobre a maior reserva mundial de nióbio (em Catalão-GO e Araxá-MG) e projetos como a ferrovia Transpacífica, que ligaria o Centro-Oeste brasileiro ao Peru, facilitando exportações para a Ásia sem passar pelo Canal do Panamá.
“Se a cassiterita de Pitinga for enviada in natura para a China, o Brasil perde a chance de industrializar o minério e controlar seus subprodutos. E com a ferrovia, o transporte até o Pacífico ficaria mais barato do que escoar pelo Atlântico”, ponderou.
Fragilidades na fiscalização e soberania
Questionado sobre a fiscalização, Salomão Cruz admitiu que o Brasil não tem estrutura para monitorar o destino final dos rejeitos. “Na prática, a cassiterita da Amazônia sempre foi beneficiada em São Paulo, e ninguém rastreia o que vai junto no minério. Se a China montar uma planta de concentração de urânio em Pitinga, pode estocar o material e depois exportá-lo como ‘resíduo industrial'”, afirmou.
Ele também criticou a falta de investimento em pesquisa mineral na Amazônia. “Desde os anos 1990, a CPRM não faz prospecção em áreas indígenas ou de conservação. A maior reserva de nióbio do mundo, em Seis Lagos (AM), está parada por conflitos fundiários. Enquanto isso, perdemos oportunidades para grupos estrangeiros.”
A entrevista destacou a tensão entre desenvolvimento econômico e soberania nacional. Enquanto o governo federal vê a venda como atração de investimentos, especialistas alertam para riscos de perda de controle sobre recursos estratégicos. “Pitinga é só um exemplo. Ou o Brasil passa a tratar mineração como política de Estado, ou continuaremos exportando commodities e importando produtos industrializados”, concluiu Cruz.