Cotidiano

Aos 100 anos sapateiro larga profissão para cuidar de esposa que está doente

Em outubro, o sapateiro aposentado completa 101 anos de idade e afirma que um dos segredos para longevidade é dançar

Mãos que poderiam estar calejadas ou trêmulas, mas que, no entanto, gesticulavam com precisão a cada trecho de história narrada. Foi assim que Daniel Francisco Almeida, sapateiro, aposentado e com 100 anos de idade, concedeu entrevista à Folha. Natural de Cajazeiras, cidade pertencente ao sertão paraibano, ele reside em Roraima desde 1974 e hoje sua preocupação absoluta é cuidar da “bebê”, apelido carinhoso com o qual presentou a esposa, Maria das Neves Pereira, de 88 anos.

Na Carteira de Identidade, o registro dos 100 anos é 16 de outubro de 1916. Quando indagado sobre o segredo da vida longínqua Sr.Daniel foi enfático: uma boa alimentação. “Na minha época não existia veneno, agrotóxicos e essas coisas. Nossa alimentação era mais ‘rústica’. Comíamos muita batata, milho e outras coisas. Também sempre fiz atividades, nadava, dançava muito – sempre adorei a dança -, trabalhava e nunca fiquei parado”, garantiu.

A vida como sapateiro iniciou em Cajazeiras em 1934, mas a severidade da seca do sertão resultou em novas projeções de vida. “Cajazeiras tem uma história muito bonita, sempre foi grande, até maior do que João Pessoa [capital da Paraíba] na época, mas o Nordeste é muito seco e as coisas não estavam indo muito bem por lá. Eu tinha me casado poucos anos depois, em 1949. Era um dos 10 homens mais elegantes da cidade; eu era realmente muito bonito”, disse Sr. Daniel entre risos, apontando para uma foto antiga que enfeita sua parede de quando tinha 30 anos.

“Por conta das complicações da seca, mandei meu filho Francisco Dagoberto, de 14 anos, para morar com a minha irmã aqui, em Roraima. Ela havia vindo há pouco tempo, após casar-se com um roraimense. Depois, vim com a minha esposa Maria, com quem sou casado até hoje. Tivemos algumas discussões ao longo dos anos, claro, como todo casal, mas nunca nos separamos. Foi assim que minha vida em Roraima começou”, contou.

Daniel trabalhou como mecânico e outras funções, mas foi como sapateiro que se consagrou em Boa Vista. De acordo com ele, foi o primeiro profissional do ramo no Estado. “Eu tinha uma clientela extensa. Alguns permanecem até hoje. Foram políticos, empresários, ‘madames’, gente de todo tipo. Comecei primeiro em uma sapataria no ‘Beiral’ [bairro Caetano Filho]. Cansei de chegar em casa dentro de um ‘camburão’, após receber carona de policiais preocupados comigo. Com o passar do tempo, montei a minha sapataria e fui construindo a minha casa. Pouco a pouco, tijolo por tijolo e com a ajuda de amigos de meu filho, que trabalhava no 6º BEC [Batalhão de Engenharia de Construção] e onde permanece até hoje, aos 67 anos”, revelou em tom saudosista e orgulhoso.

A casa onde Daniel recebeu a equipe da Folha é simples, acolhedora e fica localizada na rua General Penha Brasil, bairro São Francisco. Pela residência, é possível ver alguns móveis de época, poucas fotos fixadas nas paredes e em cima de estantes, e, ao lado da entrada principal, um pequeno espaço, com um ‘puxadinho’ de lona, onde em cima pode-se ler “Daniel Sapataria”, o empreendimento montado por ele, hoje está arrendado para um ex-funcionário que preservou o nome do sapateiro na fachada.

AMOR

“Eu precisei passar adiante o negócio, mas não por não conseguir continuar a trabalhar, tanto que até hoje faço meus ‘bicos’, minha visão também não é a mesma. Afinal, são mais de 70 anos de profissão. Meu motivo principal de ter passado a sapataria, foi porque precisava me dedicar à minha esposa. Minha ‘bebê’ está doente, de cama, há quatro anos. Tem diabetes, Alzheimer e está impossibilitada de fazer qualquer coisa”, desabafou Daniel, focando o olhar em uma das portas da casa.

“Ela hoje se alimenta através de sonda e não pode mais levantar. Você quer conhecê-la?”, perguntou o sapateiro aposentado. Após receber o “sim” como resposta, Daniel guiou a equipe da Folha até o quarto para onde olhava entre um relato e outro. Ao abrir a porta, deu um sorriso e apresentou: “essa é a minha bebê”.

Maria das Neves Pereira, também de Cajazeiras e esposa de Daniel, é aposentada como trabalhadora rural. Com o marido, ela teve apenas um filho. “Maria teve 10 gestações, mas perdeu todos os filhos. Fomos ao médico e ele nos disse que se ela engravidasse mais uma vez, poderia morrer. Eu não queria isso de jeito nenhum. Ela operou logo em seguida. Mas meu filho único, Francisco, me deu quatro alegrias, que me deram mais quatro alegrias”, disse Daniel, citando os 4 netos e os 4 bisnetos.

Irmã morreu com 108 anos

Durante a entrevista, Daniel falou do restante da família e citou mais de uma vez sua cidade natal. “Hoje sou o único da minha família que restou. O filho caçula de seis irmãos e prestes a completar 101 anos. Minha última irmã morreu há dois anos, com 108 anos. Talvez seja de família essa boa saúde; ou talvez sejam os tangos que sempre gostei de dançar. Não sei”, disse o sapateiro, com a mão no queixo e dando um intervalo para pensar.

Após alguns segundos refletindo sem ser interrompido, Daniel voltou a conceder a entrevista. “Retornei a Cajazeiras em 1997, mas hoje não voltaria para lá morar. Já não é mais a mesma coisa. Não tenho mais nenhum conhecido e nem a própria cidade eu reconheci quando fui. Roraima é a minha casa. É onde escolhi viver e morrer”.

De acordo com IBGE, Roraima possui mais de 250 pessoas acima dos 90 anos

Sr. Daniel Francisco de Almeida faz parte do grupo de 290 pessoas que possuem 90 anos ou mais em Roraima. Esses dados foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em Roraima e correspondem à estimativa da Projeção da População do Brasil e Unidades da Federação por sexo e idade para o período de 2000 a 2013.

Ainda segundo o órgão, para 2030 está previsto um número de 702 pessoas com esta faixa etária. Conforme o último Censo Demográfico, realizado em 2010, foi contabilizado 35 pessoas de 100 anos de idade ou mais naquele ano em Roraima. No Brasil, esse número alcançou a margem de pouco mais de 24 mil pessoas.

O que o Censo mostra também é que os brasileiros estão vivendo mais e melhor. São, em média, 25 anos a mais do que na década de 60. É possível ver essa mudança mais nitidamente nos estados da Bahia e Amapá, que possuem o maior percentual (0,03%) de pessoas com 100 anos ou mais. (C.C)

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