A memória do povo é curta e seletiva, mas a situação dos funcionários da Companhia Energética de Roraima (CERR), que está nos seus últimos suspiros do processo de extinção, pode ser resumida assim: quem paga a conta pelos desmandos sempre são os trabalhadores, depois de uma novela que se arrasta desde janeiro de 2017, quando a empresa perdeu a concessão para a distribuição e comercialização de energia elétrica nos municípios do interior.
De lá até aqui, entre muito sofrimento, incertezas e prorrogações de prazo de liquidação da companhia, que tem como acionista majoritário o Governo de Roraima, os funcionários caminham para a pior notícia de todas, que é a demissão em massa dos 261 funcionários que ficaram sem função desde quando a CERR deixou de gerar e fornecer energia elétrica para os municípios do interior e comunidades indígenas.
Foram anos de denúncias e escândalos que remontam ao tempo em que a empresa foi criada, em 1969, com o nome de Centrais Elétricas de Roraima S.A. Em 1989, já com o atual nome, a Cerr deixou de operar na Capital e ficou responsável apenas pelo interior do Estado, quando começou uma trajetória entremeada de escândalos, entre os quais a venda das elets, compra superfaturada e sem licitação de geradores, além de supostos pagamentos milionários indevidos.
Em 2012, quando o governo começou com o discurso de que a Cerr passaria por processo de transformação para torná-la uma empresa viável e que entraria em um processo de difusão ou absorção com a Eletrobras Distribuição Roraima, os diretores da empresa à época pegaram R$604 milhões emprestados com a alegação de que seria para sanar dívidas. A montanha de dinheiro evaporou-se sem que a Cerr tivesse se tornado viável.
Quem confirmou isso foi o ex-presidente da empresa, Antonio Carramilo, em entrevista à Folha de Boa Vista em abril de 2016, quando afirmou que R$ 542 milhões desse valor haviam sido repassados pela Caixa Econômica ao Governo do Estado na então administração do já falecido José de Anchieta Junior. Segundo Carramilo, ao assumir a empresa em 2015, ele verificou que “o dinheiro sumiu e nada foi feito”, em um escândalo que ficou por isso mesmo. Enquanto isso, à época, os apagões eram constantes nas cidades do interior.
Depois, o novo presidente da Cerr, Augusto Iglesias, também em entrevista à Folha de Boa Vista em novembro de 2016, foi bem explícito ao alegar que a companhia acumulava rombo milionário com obras inacabadas, herança de administrações anteriores. Foi nas mãos dele que estourou a denúncia da venda das elets, que eram ações que a empresa tinha no mercado financeiro, assunto esse que nunca mais se ouviu falar.
É necessário frisar, ainda, que a situação mostrou-se tão favorável a ele que Iglesias elegeu-se deputado estadual em 1998, mandato que foi encerrado sendo investigado no maior escândalo de corrupção de Roraima, o “caso gafanhoto, quando a esposa dele chegou a ser presa. Ele ainda tentou se eleger deputado federal em 2014, mas não conseguiu.
Foi nas mãos de Iglesias que também estourou o escândalo da venda de geradores de energia, quando em setembro de 2002 foi denunciado pelo Ministério Público de Roraima (MPRR) sob a acusação de fraudar licitações, mas, neste caso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu parcialmente o recurso em favor dele, em 2010, diante da alegação de que ele não era mais diretor da Cerr e que não ficou bem clara a participação no esquema.
Para não ficar apenas no passado, em janeiro deste ano, o presidente da Assembleia Legislativa de Roraima (ALE-RR), deputado Sampaio, pediu ao MPRR para investigar um pagamento de R$ 20 milhões realizado pela Cerr à empresa Concriel, caso apontado como suspeita de improbidade administrativa e violação de leis estaduais, uma vez que esse pagamento foi feito por meio de um cardo extrajudicial, mesmo após a empesa ter desistido de uma briga judicial.
Além de pedir uma investigação criminal, Sampaio solicitou a abertura de ação para reparação de danos aos cofres públicos e ainda a análise das demonstrações contábeis rejeitadas em 2023 por conselheiros e auditores da Cerr. Também solicitou a destituição definitiva de Cecília Lorenzon como liquidante da Cerr, função que ela acumulava com o cargo de secretária estadual de Saúde, de onde ela chegou a ser afastada por decisão judicial por suspeita em envolvimento em fraudes nas cirurgias ortopédica, mas foi reconduzida depois.
Depois dessa denúncia de Sampaio, que incluiu a cobrança de propinas a empresários da área de saúde, Cecília Lorenzon foi exonerada da Sesau e, em seguida, deixou a Cerr, mais uma vez mostrando as conexões que a moribunda companhia energética roraimense manteve ao longo de sua existência. Outro detalhe é que a ex liquidante não ficou desamparada, pois foi galgada a titular da Secretaria de Governo Digital.
Como é de praxe, desamparados mesmo ficaram os funcionários, quem realmente pagará a conta de tudo isso que ocorreu com a empresa energética, os quais serão demitidos como se estivessem sendo punidos por tudo o que aconteceu. Enquanto isso, ninguém mais ouvirá falar da Cerr nem de punições aos envolvidos nos grandes escândalos que se seguiram até o fim da agonizante liquidação.
*Colunista