Ronildo Rodrigues dos Santos
Cientista Social
Essa semana estamos em realização das Conferências de Assistência Social, que aconteceram nos dias 10 e 11 em Boa Vista. Com isso, quero refletir com vocês sobre as políticas públicas do SUAS em nossa cidade: suas potências, seus limites e os caminhos urgentes para avançarmos coletivamente.
Boa Vista, capital do estado de Roraima, tornou-se, nos últimos anos, um dos epicentros da crise humanitária que assola a América do Sul. A intensa migração de venezuelanos, em especial, trouxe à tona tanto a solidariedade do povo roraimense quanto as evidentes fragilidades do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para lidar com realidades complexas e em constante transformação. É nesse cenário de fronteira, vulnerabilidade e urgência social que o SUAS mostra o quão urgente é sua reestruturação para enfrentar desafios antigos e novos — com justiça, dignidade e compromisso ético com os direitos humanos.
O SUAS, concebido para garantir proteção social à população em situação de vulnerabilidade, tem enfrentado sérios obstáculos diante da crise migratória. A estrutura pensada originalmente para uma população relativamente estável tem dificuldade em lidar com o crescimento abrupto e contínuo de demandas trazidas pela migração. Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os CREAS (especializados em situações de violação de direitos) vivem sobrecarregados, sem pessoal suficiente, sem recursos adequados e, muitas vezes, sem políticas específicas que acolham, com efetividade, famílias migrantes.
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A defasagem torna-se ainda mais gritante quando se fala da proteção de crianças e adolescentes. A cidade de Boa Vista abriga milhares de meninos e meninas em condições de absoluta vulnerabilidade, muitos em situação de rua, exploração laboral ou mendicância — realidades agravadas pelo racismo estrutural e pela xenofobia, quando essas crianças são estrangeiras ou indígenas. O SUAS deveria atuar como o esteio da proteção integral garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas encontra barreiras estruturais, culturais e institucionais. A nacionalidade de uma criança não deveria determinar o nível de atenção e cuidado que ela recebe — mas na prática, vemos tratamentos desiguais, seletividade na prestação dos serviços e uma lógica de exclusão incompatível com os princípios da assistência social brasileira.
Para além das dificuldades materiais, há um elemento estrutural que precisa ser enfrentado com urgência: a fragmentação da rede de atendimento. O SUAS, por definição, é uma rede — integrada por entes federativos, organizações da sociedade civil e comunidade. No entanto, em Boa Vista, observa-se uma disputa por protagonismo e prestígio, em vez de um esforço cooperativo por soluções. Assistentes sociais, psicólogos, ONGs, igrejas e o próprio poder público ainda operam em lógicas paralelas, descoordenadas, competindo por recursos e visibilidade. Isso enfraquece a potência transformadora do SUAS e limita os impactos das ações implementadas.
Se quisermos de fato avançar, é fundamental reconhecer e enfrentar, de maneira coletiva, ao menos três grandes desafios:
1. Políticas públicas específicas para populações migrantes
É urgente que o SUAS em Boa Vista desenvolva protocolos próprios de atendimento às famílias migrantes, respeitando suas culturas, línguas e formas de organização. Isso implica ampliar e capacitar equipes, fomentar políticas bilíngues e garantir atendimento com dignidade, sem discriminação.
2. Universalização da proteção à infância e adolescência
A proteção não pode ser seletiva. Toda criança, brasileira ou não, merece acesso à escola, alimentação adequada, espaços de lazer e um ambiente seguro. Isso demanda investimento em equipes interdisciplinares, parcerias com escolas e o fortalecimento dos Conselhos Tutelares.
3. Construção de uma rede integrada e colaborativa
Chegou a hora de abandonar a lógica da disputa institucional. A assistência social não é uma competição. É preciso instaurar fóruns permanentes de articulação, com escuta ativa das comunidades atendidas e planejamento conjunto entre os agentes da rede. Apenas a cooperação efetiva pode gerar soluções sustentáveis.
Esses desafios não são simples, mas são possíveis de enfrentar. O que está em jogo é a própria essência de nossa humanidade: a capacidade de cuidar dos nossos, sejam eles quem forem, tenham vindo de onde vierem. Boa Vista não pode continuar tratando o SUAS como um mecanismo paliativo. É hora de investir, planejar e transformar. A cidade é fronteira, sim — mas pode ser, também, um farol de justiça social para o Brasil e para o continente.