JESSÉ SOUZA

Sobre um pedaço de papel, o orgulho de ser e o travesseiro mais macio

Dia da Imprensa foi marcado por entrega de honraria aos profissionais pela Assembleia Legislativa (Foto: Divulgação)

Devido a minha atuação na Folha de Boa Vista por meio de artigos de opinião contundentes, na época em que eu fui convidado a fazer um intercâmbio cultural e profissional nos Estados Unidos, em 2002, momento em que ainda havia um forte embate sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, recebi fortes ataques por e-mail e pessoalmente, já que não havia redes sociais paras os haters (odiadores) atuarem.

Como sempre fui defensor dos direitos dos povos indígenas, diziam que eu iria me vender nos States, já que existia uma forte teoria conspiratória, que eu chamo até hoje de paranoia da internacionalização da Amazônia. Cumpri com minha agenda em quatro estados (Washington, Novo México, Oklahoma e Califórnia) e mais a Capital Washigton DC, por onde passei por comunidades indígenas e redações dos principais jornais daquele país. Saí um pouco melhor de lá.

O tempo passou, a Raposa Serra do Sol foi homologada em 2005, quando passou a ser contestada na Justiça até o embate final, em 2009, com o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrando o julgamento ao reconhecer a legalidade da homologação da terra indígena. Chegamos até aqui e ficou comprovado que as teorias conspiratórias não passavam de paranoias alimentadas por um forte complô alimentado por forças poderosas, que incluíam o grande empresariado do garimpo, madeireiras e produtores latifundiários.

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Depois de duas décadas de carteira assinada, encerrei minha trajetória na FolhaBV ainda como editor-chefe e continuei pobre financeiramente, não tão quanto entrei, mas não consegui galgar os altos extratos sociais que muitos almejam quando chegam ao ápice de suas profissões. Porque nunca me vendi, como alguns fizeram em suas respectivas posições e jornais onde atuavam, embora oportunidades não tenham me faltado.

Certa vez, quando eu saí do jornal a pé, indo para o Centro, fui abordado na rua por um agente do governo, que queria saber quanto eu aceitaria para parar de denunciar o famoso “esquema do DER”, que era o desvio de recursos federais destinados ao asfaltamento das rodovias federais pelo Departamento Estadual de Estrada e Rodagem, hoje extinto. Logo em seguida, o DER também serviu para operar outro grande esquema, o dos “gafanhotos”.

Eu estava recém-casado, morando de aluguel e endividado. Mas alguém havia me aconselhado um dia: “Se você não quer se vender de verdade, então coloca um preço impagável”. E foi isso o que fiz, pois eu já estava dentro do carro e não sabia o que poderia ocorrer a partir dali. A proposta obviamente foi negada e a carona encerrada imediatamente sob o argumento de que aquele valor era irreal.

Meses depois, outro agente me abordou oferecendo nova proposta, a de receber um carro zero km em troca de elaborar uma cartilha informativa, a qual eu nem precisaria entregar – apenas assinar como entregue. Nem preciso detalhar que continuei a pé até comprar uma moto velha que foi meu principal transporte até conseguir me erguer financeiramente pelo suor do meu rosto e os solados gastos dos meus sapatos.

Anos se passaram novamente e aqui estou escrevendo artigos diários nesta Coluna, até ser convidado pela Assembleia Legislativa de Roraima (ALE-RR) para receber a Comenda “Orgulho de Roraima”, uma homenagem ao Dia da Imprensa, em sessão solene realizada na segunda-feira passada. E não tardaram a surgir insinuações de que eu estaria me vendendo para Assembleia Legislativa para que os deputados não mais sejam criticados ou denunciados.

Não há sentido tais insinuações. Se eu não me vendi quando estava mais pobre que hoje, andando a pé e recebendo um salário de repórter que mal dava para pagar minhas contas, por que iria me vender agora por um pedaço de papel que não vale dinheiro algum, a não ser a sensação de dever cumprido pelos meus 34 anos de imprensa?

A Assembleia Legislativa é uma instituição a qual nos pertence também – embora haja muitas contradições. Mas somos nós que colocamos os deputados lá e somos nós que temos o poder de tirá-los. A honraria a qual fomos agraciados é legítima, concedida por um poder constituído que tem, também, o papel de reconhecer os valores de um povo. E assim foi feito.

Ninguém saiu maior ou menor dessa sessão solene – nem mais rico nem mais pobre. Como agraciados, saímos um pouco mais leves, sabendo que nossos familiares e amigos ficaram felizes por ter alguém do seu convívio reconhecido como “Orgulho de Roraima”. Mas ninguém precisa ser condecorado para se sentir um orgulho de nosso Estado. Basta ter seus princípios e valores que não o financeiro.  

Eu dormindo com o meu travesseiro mais macio, que é minha consciência tranquila, já teria sido suficiente.  Mas agora eu tenho um papel para pendurar na parede…

*Colunista

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