Por Evelin Campos
No imaginário popular, São João é sinônimo de festa junina: fogueiras acesas, bandeirolas coloridas, quadrilhas animadas e o som do forró embalando as noites de junho. Mas há uma outra camada, mais silenciosa, quase esquecida, que envolve a figura de São João Batista. Uma dimensão que atravessa séculos, conecta espiritualidade, música e tradição ancestral.
É sobre esse João menos dançado e mais sentido que esta reportagem se debruça: o João do verbo, da água, da justiça — e, surpreendentemente, do som.
O profeta que preparou o caminho
Personagem central na narrativa cristã, João Batista é conhecido como aquele que precedeu Jesus. Seu nascimento, fruto da promessa divina a Isabel e Zacarias, é marcado pelo milagre e pelo silêncio. João viveu em reclusão, no deserto, alimentando-se de mel silvestre e vestindo peles de camelo.
Pregador fervoroso, foi ele quem batizou Cristo no rio Jordão. Seu papel era claro: preparar espiritualmente o povo para a chegada do Messias.
Mas João não apenas pregava — ele anunciava. E sua forma de anunciar atravessa os tempos, indo muito além da palavra dita.
Um hino em latim e o nascimento da escala musical
No século XI, o monge beneditino Guido d’Arezzo, buscando facilitar o aprendizado musical dos coros religiosos, criou um sistema mnemônico baseado em um hino dedicado a São João Batista.
Esse hino, chamado Ut queant laxis, possui versos cujas primeiras sílabas deram origem à escala musical diatônica:
Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labii reatum
Sancte Ioannes
Das iniciais dos seis primeiros versos, Guido extraiu: Ut, Re, Mi, Fa, Sol, La. Mais tarde, Ut foi substituído por Dó, e o Si foi criado a partir das iniciais de Sancte Ioannes.
A escala que aprendemos na escola, a base de toda a música ocidental, nasceu dessa prece. São João Batista, então, não só batizou com água — batizou também o som.
Sua relação com a música não é apenas simbólica. Ela está gravada em cada nota que ressoa. É como se ele tivesse, mais uma vez, preparado o caminho: desta vez, para que o ser humano pudesse expressar, através da música, tudo aquilo que não cabe nas palavras.
Entre fé e ancestralidade: o sincretismo com Xangô
No Brasil, onde espiritualidade e cultura se entrelaçam em fios invisíveis de resistência, São João Batista é sincretizado com Xangô, orixá da justiça, do fogo e do trovão, nas tradições de matriz africana.
Este não é um paralelo aleatório ou forçado. Ambos representam o verbo que transforma, o fogo que purifica e a força que corrige. São João com sua palavra firme; Xangô com o machado que parte a injustiça.
O sincretismo, nascido da resistência dos povos escravizados que ocultaram seus orixás sob o manto dos santos católicos, é mais do que sobreposição: é sobrevivência simbólica.
João e Xangô não se confundem — se reconhecem. Um nas águas do Jordão. O outro no estrondo do céu. Ambos regem o ritmo das transformações.
Uma fé que se ouve
Pensar em São João apenas como símbolo das festas de junho é limitar a profundidade de sua trajetória espiritual. Ele é também aquele que dá nome às notas musicais. Que anuncia o novo com firmeza. Que se encontra com Xangô nas encruzilhadas da fé afro-brasileira.
A sua espiritualidade está nos cantos gregorianos e nos toques de tambor. Na água e no fogo. Na palavra e no trovão.
Celebrar São João, portanto, pode ser mais do que acender fogueira. Pode ser também reconhecer a potência da fé que vibra em várias vozes, sotaques e ritmos. Uma fé que se faz som.
Texto desenvolvido por Momento Zen, para reflexão e diálogo inter-religioso, cultural e espiritual.