
O símbolo da impunidade que reina em Roraima continua sendo o caso do assassinato do casal de agricultores Flávia Guilarducci e Jânio Bonfim de Sousa na região do Surrão, no Município do Cantá, um crime cruel que ficou conhecido como “Caso Surrão”. Em 14 de abri deste ano, esta coluna tratou do assunto no artigo intitulado “Um ano de impunidade no caso do Cantá, com famílias ainda sendo pressionadas”. Trata-se de um crime por disputa de terras cujo enredo envolve não apenas personagens do mais alto escalão da sociedade, mas também as entranhas do poder.
O crime ocorreu em abril de 2024 na Fazenda 3A, onde o casal detinha a posse há 25 anos da área de aproximadamente 167 hectares, mas que estava em disputa judicial. Marido e mulheres foram surpreendidos por homens armados que invadiram a propriedade rural, quando foram executados a tiros sem qualquer chance de defesa. O dado importante é que a mulher, precavida, estava com o celular gravando a conversa, o que foi possível saber detalhes desse horrendo crime.
Há várias formas de narrar o fatídico enredo. No entanto, como o caso segue impune, é imprescindível que se comece pelo principal acusado, o autor dos disparos, o empresário Caio Porto, que está foragido até os dias atuais, faltando cinco meses para o caso completar dois anos. O acusado pertence a uma família influente no ramo empresarial com ligações com os governos e políticos locais, que segue formalizando contratos para grandes eventos.
Conforme investigações da Polícia Civil, junto com Caio Porto no dia do crime estava o capitão da Polícia Militar de Roraima, Helton John Silva de Souza, que à época era chefe de segurança do governador Antonio Denarium e que chegou a citar, em seu depoimento, não apenas o governador, mas também o comandante da PM, Miramilton Goiano, que já era investigado pela Polícia Federal por venda ilegal de armas junto com seu filho, um policial penal.
O chefe de segurança do governador, depois do crime, foi jogar futevôlei em uma quadra de areia na Praça Ayrton Senna, no Centro de Boa Vista, cujo complexo poliesportivo é muito frequentado pela sociedade local. Preso somente dias depois, o depoimento dele foi decisivo para revelar outros detalhes importantes. Disse que no dia do crime havia ligado para o então comandante da PM, Miramilton Goiano, que o aconselhara a se livrar do telefone, em vez de ordenar a imediata prisão do capitão.
O capitão também revelou outros detalhes não menos sórdidos. Afirmou que um dos irmãos de Caio Porto, dois dias após a execução do casal, foi ao Palácio do Governo para um suposto encontro com o governador para tratar sobre a situação de Caio Porto, apontando que a família tinha bom trânsito e influência nos corredores do poder local, fato este confirmado com os seguidos contratos de empresas ligada à família assinados com os governos.
Os detalhes sórdidos não param por aí. O duplo assassinato no Cantá ainda tem entre os envolvidos um atirador esportivo, ou seja, um CAC, sigla para Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador, atividade esta que teve as portas abertas no governo passado para ter acesso amplo a armas e munições. As informações apontam que as munições podem ter sido adquiridas por meio do CAC.
No áudio gravado pela mulher, durante a discussão antes da brutal execução, é possível ouvir a respeito de um suposto esquema no órgão fundiário estadual, o Instituto de Terras de Roraima (Iteraima), que acabou sendo alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de Roraima, que confirmou a existência de esquemas na regularização fundiária. Esse é outro importante detalhe que não pode ser ignorado.
Aí estão os meandros de um caso que se apresentava como um crime que aparentemente tratava-se tão somente de uma disputa agrária, mas cujas provas cabais levaram o desenrolar dos fatos aos corredores palacianos e a gente importante envolvida. E a pergunta que jamais pode ser silenciada: será por isso que o caso segue impune e o principal acusado, um empresário com fortes ligações com o poder local, continua foragido?
*Colunista