JESSÉ SOUZA

Da autoaprofobia na periferia boa-vistense ao empresário que mata gari e vai malhar

Residencial Vila Jardim, no bairro Cidade Satélite, desperta aversão a pobres em Boa Vista (Foto: Divulgação)

Depois que alguns moradores do bairro Paraviana, área nobre da Capital,  iniciaram um movimento sem rosto para protestar contra a construção de unidades habitacionais do programa federal Minha Casa Minha Vida naquele setor da cidade, na zona Leste, esta semana surgiu um movimento idêntico do outro lado da cidade, na zona Oeste, só que desta vez os moradores mostrando a cara em um vídeo divulgado nas redes sociais.

No vídeo, um grupo de moradores do bairro Cidade Satélite não economizou palavras para protestar contra o início das obras de construção de unidades habitacionais do mesmo programa federal destinado a pessoas de baixa renda. Em resumo, disseram que a construção de um novo conjunto habitacional naquele bairro iria ser responsável pelo aumento da criminalidade, citando como exemplo a situação do Residencial Vila Jardim.

Essa é a concepção que muitas pessoas têm, a de que ser pobre é uma autorização para se tornar bandido, como se pobreza fosse sinônimo de criminalidade, e não de ausência de políticas públicas que garantam dignidade para famílias de baixa renda, como creches e escolas, saneamento básico, programas sociais, geração de emprego, segurança pública, unidades de saúde e acesso a serviços públicos básicos que garantam cidadania.

A situação do Vila Jardim é um exemplo. Construíram no Cidade Satélite 2.992 apartamentos, divididos em 121 blocos, para abrigar cerca de 15 mil pessoas, mas sem políticas públicas que garantissem infraestrutura necessária e presença governamental que pudessem impedir que o tráfico de droga se infiltrasse nas famílias desestruturadas e fragilizadas economicamente. Deixaram que o pior ocorresse para depois remendarem com escola militarizada, posto policial e alguns programas que não surtiram efeito porque já era tarde.

Movimento no Paraviana para não aceitar moradias populares pode ser explicado pela aprofobia (aversão a pobre) e política de higienização social disfarçados de defesa do patrimônio contra a desvalorização imobiliária, que também não deixa de ser uma política higienista. Mas movimento no Cidade Satélite contra pobres sem moradia é uma situação enviesada, em que pobres que se acham melhor posicionados financeiramente não se envergonham de mostrar aversão a pobres assalariados.

A aversão a pobres no Paraviana ficou visível quando um violento chefe de facção venezuelana, condenado por narcotráfico, que morava naquele bairro, fugiu da prisão domiciliar, mas o fato que não provocou nenhum espanto, pois o bandido internacional estava socialmente aceito por ter sua mansão ao lado das demais onde moram os ricos de Boa Vista. Bandido rico pode. O que não pode é morador pobre de qualquer jeito, bandido ou não.

No caso do Cidade Satélite, somente a autoaprofobia pode explicar, em que as pessoas que se sentem em um nível logo acima de um assalariado já passam a renegar a pobreza, como forma de mostrar não pertencimento, de achar que o menos pobre precisa ser execrado para que elas possam sentir-se mais privilegiadas e não tivessem nada a ver com problemas sociais, porque pobreza é vista como atestado de bandido. É como se fosse o indígena não querendo ser indígena. O imigrante não querendo ser imigrante.

Essa síndrome de vira-lata é real, em que o brasileiro que se sente inferior a cidadãos de países do primeiro mundo procura algo para se sentir superior aos seus semelhantes. Existe até na religião, em que o evangélico passa a se sentir detentor de Deus enquanto os não crentes são dignos do inferno, uma classe que precisa ser varrida pela fúria divina por serem considerados inferiores. Tem o cidadão que busca um mito na política como símbolo de supremacia acima de tudo e de todos. Existe o chefe que esnoba o porteiro.

Não foi à toa que o país acabou escandalizado pelo ato do empresário CEO, vice-presidente e diretor executivo, “cristão, marido, pai e patriota”, que matou a tiro um gari que fazia coleta de lixo urbano. O patriota executivo enxergou nos garis, que interrompiam seu trajeto para a academia, pessoas desprezíveis e sem qualquer valor, assim como quaisquer outros pobres, inclusive ameaçados de que não podiam sequer encostar em seu carro.

Estamos experimentando um canibalismo social que não é novo, que tem raízes desde o Brasil colônia, em que os invasores e potências econômicas nunca tiveram pudores para invadir, explorar e se esbaldar. Porque eles sabiam que aqui sempre poderiam contar com os vendilhões, traidores e conspiradores que nunca perdiam a oportunidade de serem entreguistas para se sentirem superiores como capitães do mato ou entreguistas para que subissem um degrau acima da ralé colonizada.

É por isso que o cidadão que se sente superior mata um gari e vai malhar. Ou o cidadão que se acha classe média não se envergonha em dizer que pobre é bandido. Ou que por morar em área nobre não aceita moradia popular na vizinhança…  

*Colunista

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