JESSÉ SOUZA

Crime sórdido e leis que consideravam mulheres como ‘incapazes’ e propriedade de homens

Câmera de segurança flagra autor de feminicídio em frente de pousada onde jovem foi assassinada (Imagem: Reprodução)

Parece que faz muito tempo. Mas não. É bem recente e remete a nossos avós ou mesmo nossos pais. Até 1962, mulher casada só podia trabalhar fora de casa se o marido permitisse. Não apenas isso: a autorização poderia ser revogada a qualquer momento, o que era protegido por lei, conforme o Código Civil de 1916, que era bem claro ao definir que mulheres casadas eram consideradas “incapazes”.

Naquela época, mulher não podia votar, direito este concedido somente a partir de 1932, quando um novo Código Eleitoral foi promulgado. Detalhe: as casadas ainda precisavam de autorização do marido para votar, o que foi derrubada em 1934. O Código Civil de 1916 também impedia mulheres casadas de abrir conta no banco, ter estabelecimento comercial ou mesmo viajar sem a autorização dos maridos.

Com a promulgação do Estatuto das Mulheres Casadas, em 1962, os direitos das mulheres avançaram com o fim das proibições reguladas em lei. Que ninguém pense que são “coisas do passado”, pois foi somente a Constituição de 1988, ou seja, há 37 anos que ficou expressa a igualdade de direitos e deveres entre mulheres e homens. Foi logo ali, mediante uma Constituição que até hoje é atacada exatamente por reconhecer direitos de minorias, a exemplo das populações indígenas.  

Esse preâmbulo é necessário para abordar o covarde e bárbaro assassinato de Brenda Samara Lopes de Castro, de 20 anos, ocorrido no domingo da semana passada, 25, no bairro Tancredo Neve, zona Oeste da Capital, caso este que provocou indignação pública e repercute até hoje devido ao enredo sórdido, cujo autor do crime foi o ex-companheiro da jovem, Kaio Vinicius Lopes da Silva Ribeiro, de 23 anos, com quem ela tinha um filho de 1,6 ano.

O feminicídio tem os mesmos elementos dos demais crimes cujas vítimas são mulheres: ódio a mulher por não aceitar a recente separação e por ela estar seguindo sua vida da forma que lhe conviesse. Ao sair de uma pousada, onde estava com um homem, o assassino atacou Brenda como um peão de fazenda mata um animal: imobilizada no chão com o joelho no pescoço, o que impedia qualquer chance de reagir às estocadas de provavelmente um canivete ou punhal.

O brutal crime tem mais detalhes sórdidos. O homem com quem ela estava nada fez para protegê-la. O motorista do carro de aplicativo, de onde a vítima foi arrancada, achou que não tinha nada a ver com aquilo (se fosse por falta de pagamento, certamente seguiria com a passageira até a uma delegacia). E não menos aterrador: o assassino foi ao local do crime com um amigo na garupa da moto, que apoiou o parceiro por certamente pensar da mesma forma, assim como pensam muitos machos escrotos.

Trata-se de um cenário rotineiro que não é de hoje. Em 2023, o feminicídio em Roraima aumentou de forma alarmante, com crescimento de 100% nos casos em comparação a 2022, com uma taxa de 1,9 por 100 mil habitantes, tornando-se o quarto Estado mais letal para mulheres na Amazônia Legal. Roraima lidera o crescimento da taxa de feminicídio no país, conforme dados do Mapa de Segurança Pública, o qual constatou redução de 40,8% nos crimes de feminicídio entre 2020 e 2021, porém apresentando alta taxa de 7,4 mulheres mortas a cada 100 mil habitantes.

Nenhuma classe social está livre desse tipo de crime ou mesmo da tentativa de feminicídio. Na mesma noite do assassinato de Brenda na periferia, uma advogada e professora da rede pública estadual, de 43 anos, foi atacada pelo ex-companheiro com golpe de canivete no pescoço, dentro da própria casa, do outro lado da cidade, no bairro Caçari, zona Leste de Boa Vista, considerada área nobre. O autor do crime, que não aceita a separação, agiu após ver a ex-companheira com um colega de trabalho. Por pouco ela não teve o mesmo destino de Brenda.

É como se estivéssemos ainda no tempo de quando mulher era propriedade legal do homem, a quem deveria pedir autorização para votar ou trabalhar, quando o homem podia matar para “lavar a honra”, enquanto a ele tudo era permitido. Não há como dissociar os bárbaros crimes cometidos contra mulheres desse passado do patriarcado – palavra esta que provoca arrepios nos extremistas de direita e religiosos que usam a Bíblia para manter as mulheres submissas, inclusive consideradas de terem saído da costela de Adão.

Não é à toa que senadores, em plena audiência pública sendo gravada, não se intimidaram em mandar uma ministra a “colocar-se no seu lugar” ou a dizer que “respeita a mulher, mas a ministra não”, como se quisessem dizer que o lugar de uma mulher é aquele do Código Civil de 1916, onde política era coisa exclusivamente de machões. A repercussão do fato despertou comportamentos misóginos nas redes sociais, com ataques tão aviltantes que abertamente coloca a vítima no lugar de algoz.

Não sem sentido os homens que se acham proprietários das mulheres matam de forma fria e calculista as mulheres como se estivessem matando um animal de seu curral, encurralado com o joelho no pescoço.  Os dois casos que ocorreram na semana passada, em Boa Vista, nos dois extremos da cidade, são uma prova cabal de tudo isso que estamos vivendo.

Se duvidar, vão colocar a culpa nas vítimas, como está ocorrendo no caso da ministra atacada no Senado, pois o patriarcado é tão forte, presente e normalizado na sociedade atual a ponto de mulheres defenderem o indefensável e colocarem mulheres como culpadas por sua própria morte.  

*Colunista

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