A HIPOCRISIA DA BELEZA: quando o espelho passa a valer mais que o ser

Vivemos tempos em que o reflexo no espelho parece ter mais valor que o conteúdo do olhar. É o império da aparência, o reinado do filtro, a ditadura do padrão. A sociedade moderna, que se gaba de ser livre e diversa, na prática se tornou refém da estética, da plástica, da simetria fabricada em clínicas e aplicativos. É a era da hipocrisia da beleza, onde o “ser” foi colocado em segundo plano, e o “parecer” reina absoluto.

Não se trata de condenar quem busca cuidar da aparência, mas de questionar o preço que se paga quando a essência é abandonada no caminho. O corpo esculpido virou currículo, o rosto sem rugas virou credencial, e a profundidade de um pensamento foi substituída por curtidas, ângulos e poses estudadas. Hoje, a vaidade é a nova religião. E seus templos são os stories, os feeds e os concursos de popularidade que se travestem de relevância.

Um episódio recente, ocorrido no norte do Brasil, ilustra com perfeição esse triste retrato da nossa era. Durante um tradicional concurso de rainhas de uma feira agropecuária, o regulamento deixava claro: não se tratava apenas de avaliar beleza física, mas também o conhecimento sobre o agro, o desenvolvimento do estado, a capacidade de expressão e o compromisso com a cultura local. Uma tentativa louvável de romper com o superficial e valorizar o conteúdo.

Mas bastou o resultado ser anunciado, para que a vitoriosa ao não corresponder exatamente ao “padrão de beleza” moldado pelas redes, para que uma horda de desocupados digitais surgisse das sombras, empunhando celulares como lanças e comentários como pedras. Foi um ataque covarde, rasteiro e, acima de tudo, revelador: o mundo digital se tornou o maior espelho da nossa miséria moral.

Esses juízes de tela, que se acham donos da verdade estética, não enxergam além do primeiro plano de uma foto. São cegos pela própria superficialidade. Aplaudem o corpo esculpido, mas ignoram a alma lapidada. Exaltam o silicone e o botox, mas desprezam o conhecimento, o esforço e a história de quem tem conteúdo. A vencedora, que deveria ser celebrada pelo mérito, virou alvo de chacota simplesmente por não se encaixar na forma pré-moldada de “perfeição” que o algoritmo exige.

E aqui está a ironia: muitos dos que a criticaram jamais seriam capazes de responder uma única pergunta sobre o agronegócio, sobre a economia do estado ou sobre a importância cultural daquela feira. Mas se acham aptos a julgar quem merece ou não usar uma coroa, como se a beleza física fosse o único critério digno de aplauso.

Vivemos um tempo em que a opinião virou esporte, e o ódio virou passatempo. Gente que não lê um livro há anos se acha apta a destratar quem estuda. Pessoas que não produzem nada de valor se sentem no direito de destruir quem ousa se destacar. É o retrato cruel de uma sociedade que dá voz a quem, com todo respeito, deveria ter nascido mudo.

Porque o problema não é a liberdade de expressão — é a irresponsabilidade da expressão. Hoje, qualquer um com um celular e um perfil pode vomitar ofensas sob a desculpa de estar “apenas dando opinião”. Só que opinião sem empatia é agressão. E liberdade sem limites é barbárie.

As redes sociais, que nasceram com a promessa de conectar o mundo, acabaram conectando o pior de nós. Transformaram o diálogo em disputa, a beleza em mercadoria e o pensamento em ameaça. A imagem virou moeda, e o conteúdo, um detalhe descartável.

Mas será que ninguém percebe o quanto isso é doentio? Estamos criando uma geração que acredita que o valor de uma mulher cabe em um número de manequim, que o sucesso de um homem depende da marca do seu relógio, e que a felicidade é um filtro bem aplicado. É uma ilusão coletiva, alimentada por curtidas e dopamina digital.

Enquanto isso, o conteúdo, esse velho amigo que exige leitura, reflexão e sensibilidade, foi colocado em quarentena. Ser culto virou “chato”. Ser profundo virou “cansativo”. Ser diferente virou “motivo de ataque”. E o resultado é um mundo onde todos querem parecer, mas poucos querem ser.

A hipocrisia da beleza é isso: um sistema que prega aceitação, mas massacra quem não segue o molde; que fala em liberdade, mas aprisiona nas aparências; que exalta a autenticidade, mas só aplaude o que é igual.

No caso do concurso de rainha, o episódio vai além da ofensa pessoal à vencedora, ele escancara o quanto ainda estamos atrasados como sociedade. Porque enquanto a proposta do evento buscava valorizar a inteligência, o conhecimento e o papel da mulher no desenvolvimento rural, o público preferiu olhar apenas para o contorno do corpo. É triste, mas real: estamos educando olhos, não mentes.

O mundo precisa reaprender a enxergar o invisível. A verdadeira beleza nunca esteve nas formas, mas na atitude. Está na maneira como alguém trata o outro, na inteligência com que fala, na coragem com que defende o que acredita. Nenhum bisturi ou filtro será capaz de fabricar isso.

Mas enquanto a vaidade for mais valorizada que o caráter, e a aparência mais premiada que a essência, continuaremos colecionando corpos bonitos e mentes vazias. Continuaremos vivendo num mundo onde o “feed” parece mais importante que a vida, e onde as coroas de concursos se tornam símbolo de disputa entre quem vê e quem enxerga.

A verdadeira revolução não será feita nas redes, mas dentro das pessoas. Quando começarmos a valorizar o conteúdo com a mesma intensidade que valorizamos a imagem, talvez o mundo volte a ter sentido. Talvez as mulheres sejam vistas não apenas como rostos e curvas, mas como vozes e ideias. Talvez os homens deixem de medir seu valor pelo espelho e passem a medir pelo caráter.

E talvez, infelizmente só talvez, possamos enfim sepultar essa farsa coletiva chamada hipocrisia da beleza.

Porque a beleza passa. O conteúdo fica.

E no fim das contas, o espelho sempre mente, mas a consciência, nunca.

Por: Weber Negreiros
W.N Treinamento, Consultoria e Planejamento
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