A Hutukara Associação Yanomami divulgou nota nesta sexta-feira (6) em que relata, com base em depoimentos de moradores da comunidade Aracaçá, um histórico de violências, iniciado em 2017, praticadas por garimpeiros contra indígenas da localidade situada na Terra Indígena Yanomami, em Roraima.
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“Até o momento, foi possível levantar que o histórico de tragédias na comunidade teve início em 2017, com a morte do homem conhecido como C. Sanumá. Na lista de óbitos do Polo de Waikás (polo que presta assistência a Aracaçá) há um registro de morte por agressão por disparo de arma de fogo em 2017, estando a vítima na faixa etária de 40 a 59 anos – muito provavelmente o registro do óbito de C. Sanumá”, diz a nota que cita a morte de um indígena morto após uma briga motivada pela distribuição de cachaça por garimpeiros aos indígenas.
Para a Hutukara, a “tragédia humanitária estaria sendo evitada se a União estivesse cumprindo a ordem judicial do Tribunal Regional Federal da 1º Região, que desde 2020 determinou a retirada dos garimpeiros ilegais de nossas terras”.
A região ganhou notoriedade após o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY), Junior Hekurari Yanomami, revelar que, após as denúncias de supostos estupro e morte de uma garota yanomami de 12 anos e do desaparecimento de uma criança de três anos, a comunidade foi queimada e os moradores sumiram da localidade. A hipótese levantada é de que a ação foi motivada pela tradição de que, quando um familiar indígena morre, o local onde ele vivia é queimado.
“Na tradição cultural Yanomami o corpo e os pertences dos mortos Yanomami são todos incinerados, de modo que é bastante provável que, ocorrido o assassinato, os restos mortais da vítima sejam impossíveis de se localizar a não ser a partir de suas cinzas. Por isso, é fundamental a coleta de relatos e a busca por testemunhas da comunidade”, diz.
A associação defende uma apuração “mais ampla e aprofundada” do histórico de violências vivido pelos indígenas de Aracaçá em virtude do garimpo ilegal. “Por se tratar de um povo indígena que vive conforme seus costumes tradicionais e falante de sua língua ancestral, esse trabalho exige a participação continuada de especialistas com formação técnica em antropologia, com domínio da língua e durante tempo suficiente para que os fatos sejam analisados com a profundidade que merecem”, destacou.
Nota da Hutukara Associação Yanomami
“Diante da repercussão na opinião pública da denúncia sobre a violência cometida contra a comunidade de Aracaçá, a Hutukara Associação Yanomami vem a público se pronunciar para trazer informações sobre o contexto da comunidade de Aracaçá.
Nos últimos dias a Hutukara vem tentando reconstruir os eventos denunciados pelos Yanomami e, embora não tenha reunido informações suficientes para esclarecer a ocorrência ou não do crime denunciado, recolheu informações que revelam um grave histórico de tragédias associadas ao garimpo na comunidade.
Entrevistamos ao longo desta semana parentes que vivem próximos à região de Aracaçá e uma idosa da comunidade que está na cidade de Boa Vista para receber atendimento médico. As informações obtidas até o momento confirmam o cenário desolador vivido pela comunidade a partir das relações impostas pelo garimpo, com reiterados depoimentos de violência sexual em série.
Os relatos orais registrados foram cruzados com dados oficiais do distrito de saúde (censos populacionais de 2017 e 2022, bem como registros de óbitos), de modo que foi possível identificar a cronologia dos episódios narrados. Os nomes dos sujeitos foram omitidos para preservar a segurança dos informantes.
Até o momento, foi possível levantar que o histórico de tragédias na comunidade teve início em 2017, com a morte do homem conhecido como C. Sanumá. Na lista de óbitos do Polo de Waikás (polo que presta assistência a Aracaçá) há um registro de morte por agressão por disparo de arma de fogo em 2017, estando a vitima na faixa etária de 40 a 59 anos — muito provavelmente o registro do óbito de C. Sanumá.
C. foi morto violentamente durante uma briga, fomentada pela distribuição de cachaça por garimpeiros aos indígenas. O fato ocorreu acima da comunidade de Aracaçá, próximo de uma cachoeira.
C. tinha duas esposas. Depois de sua morte, suas mulheres ficaram em uma situação de extrema vulnerabilidade, sendo prostituídas nos acampamentos de garimpo. A segunda esposa, chamada pelos Yanomami de W., morreu em seguida. Há diferentes versões sobre sua morte, mas foi possível confirmar no registo de óbitos o falecimento de uma pessoa da mesma faixa etária de W, em 2018, tendo por causa de ôbito o envenenamento auto provocado.
Após a morte de W,, uma das filhas de C. com sua primeira esposa, chamada localmente de K., na época com dezesseis anos, foi levada para se prostituir em um acampamento garimpeiro localizado próximo a Aracaçá. As entrevistas apontam que K. era explorada sexualmente por garimpeiros, por vezes sendo obrigada a manter relações sexuais com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, entre outros abusos. “Ainda, K. perdeu nesse período um bebé, que morreu por traumatismo intracraniano. A morte de uma criança nesta faixa etária também está registrada na lista de óbitos oficiais em 2019.
De acordo com os relatos, K. sofreu sequelas pelas violentas relações sexuais com os garimpeiros, e sofreu uma deficiência física permanente (ela ficou com dificuldades de se movimentar “a huu leteke”) depois de um acidente. K. engravidou do de um garimpeiro conhecido como “Pastor, e seu filho foi levado à cidade. Desesperada, tirou a própria vida se enforcando. A versão também confere com o registo de óbitos do ano de 2021.
Uma filha de K. e outra de W. ficaram sob os cuidados da mãe de C., mulher idosa, que está em Boa Vista para atendimento médico.
A sequência de tragédias que marcaram a família de C. demonstram que. na aldeia de Aracaçá há casos generalizados de abusos e violência. A vulnerabilidade das pessoas da comunidade é tamanha que é bastante provável que episódios assim se repitam cotidianamente. Os fatos narrados corroboram a percepção dos Yanomami da região de Palimiu que, em 2021, relataram o receio de que viessem uma tragédia similar à de Aracaçá, que estava levando ao desaparecimento desta comunidade.
As denúncias sobre Aracaçá só podem ser compreendidas dentro desse cenário, no qual metade das aldeias da Terra Indígena Yanomami está sujeita ao assédio dos invasores.
Com base nisso, defendemos que se conduza uma apuração mais ampla e aprofundada do histórico de violências vivida pelos indígenas em Aracaçá por consequência do garimpo legal na Terra Indígena Yanomami. Por se tratar de um povo indígena que vive conforme seus costumes tradicionais e falante de sua língua ancestral, esse trabalho exige a participação continuada de especialistas com formação técnica em antropologia, com domínio da língua e durante tempo suficiente para que os fatos sejam analisados com a profundidade que merecem. Também é importante lembrar que na tradição cultural Yanomami o corpo e os pertences dos mortos Yanomami são todos incinerados, de modo que é bastante provável que, ocorrido o assassinato, os restos mortais da vítima sejam impossíveis de se localizar a não ser a partir de suas cinzas. Por isso, é fundamental a coleta de relatos e a busca por testemunhas da comunidade.
O drama vivido pela comunidade de Aracaçá não é fato isolado na Terra Indígena Yanomami. Em todo o território, o garimpo invade nossas terras, destrói nosso modo de vida, nossas roças e gera fome e violência. Nossas mulheres e crianças estão sendo violentadas recorrentemente em diversas regiões assoladas pelo garimpo. Nossas famílias estão adoecendo e morrendo de doenças facilmente tratáveis. Nossos jovens estão morrendo da violência das armas de fogo trazida pelos garimpeiros.
Precisamos impedir a tragédia humanitária que está se passando com os Yanomami. Queremos ver nossas famílias novamente saudáveis e em segurança. Isso só será possível com a desintrusão do garimpo ilegal da Terra Indígena Yanomami e sua proteção permanente contra novas invasões. Precisamos do comprometimento do poder público e do apoio da sociedade para a proteção das Terras Indígenas, da terra-floresta, e das vidas indígenas. Se a União estivesse cumprindo a ordem judicial do Tribunal Regional Federal da 1º Região, que, desde 2020, determinou a retirada dos garimpeiros ilegais de nossas terras, muitas das tragédias sofridas pelos Yanomami teriam sido evitadas.
Temos reiteradamente insistido que é necessário retirar os invasores da Terra Indígena Yanomami. Nossa tragédia humanitária estaria sendo evitada se a União estivesse cumprindo a ordem judicial do Tribunal Regional Federal da 1º Região, que desde 2020 determinou a retirada dos garimpeiros ilegais de nossas terras.
Queremos viver em paz!”