Éder Rodrigues dos Santos

Existe uma história no cinema ficcional na fronteira do Brasil com a Venezuela que é atravessada por drama familiar, desigualdades sociais, paisagens amazônicas e ancestralidade? A resposta é: sim. El Salto de los Ángeles é um longa de ficção dirigido pelo cineasta venezuelano José Miguel Zamora Figuera, que mora em Roraima e tem colecionado vários prêmios e seleções em festivais. O longa metragem acompanha a história de um garoto de 12 anos (Antônio) que parte em uma jornada para encontrar o pai nos garimpos do sul da Venezuela. É considerado um drama ficcional road movie, com pitadas de aventura e comédia, que agrega desafios familiares, descobertas pessoais, lugares com belezas singulares, vividos e interpretados por muitos talentos regionais. E com final surpreendente e emocionante.

A produção independente tem elenco e equipe regionais que demonstram a qualidade e o domínio da técnica cinematográfica. Concluído em 2023 e lançado nos cinemas da Venezuela em 2024, o filme ganhou destaque ao se tornar uma das maiores bilheterias naquele país. Uma conquista recente é o prêmio concedido pela Cinemateca Nacional da Venezuela, de Melhor Filme de 2025, entregue no Festival Memória e Patrimônio, um dos maiores da Venezuela.

Nas telas e nos bastidores, a produção do filme traz grandes surpresas. Vale dizer que de 2016 a 2018, Zamora começou a articular o processo de financiamento do projeto, já morando em Boa Vista (RR). Para isso, trabalhava com apresentações cênicas na Praça das Águas e semáforos, caracterizado como o personagem do cinema mudo clássico, o Charles Chaplin. O diretor ampliou a captação do orçamento do filme com empresas privadas e seguiu sua jornada para executar e finalizar a obra. Não é só o garoto do filme El Salto de Los Ángeles que segue um périplo difícil, tortuoso e cansativo, que exige paciência e amadurecimento: o diretor Zamora também fez sua jornada rumo ao sonho de realizar um longa independente e autoral.

Estas dificuldades do cinema autoral são enfrentadas em todas as partes do mundo, pois os custos são elevados e sua produção e direção exigem habilidade técnica e capacidade de diálogo. Qualidades que Zamora reúne e projeta em seu trabalho. O fenômeno da migração de famílias venezuelanas para países vizinhos, em virtude da crise econômica e social imposta pelos embargos norte-americanos, permite que os diversos públicos tenham o privilégio de ter acesso rápido à rica e generosa cultura vizinha de nossos Hermanos. Tal fato revela-se na história de Roraima, uma vez que é possível perceber como a cultura local incorporou ao longo do tempo (mesmo antes do processo migratório de grande escala), as influências da música caribenha, da culinária e da língua que é falada por muitos roraimenses e amazônidas, em virtude da proximidade geográfica. 

            Reconhecer as virtudes socioculturais de viver em uma tríplice fronteira norte vai na contramão daquilo que espalham alguns “pseudos-comunicadores locais” e até parte da “classe política” eleita com o falso discurso nacionalista e moralista. Tais figuras elitistas proliferam midiaticamente estereótipos aproximados a uma xenofobia, tributária à ignorância, ideologias racistas e ressentimentos pessoais. Na contramão dessa violência discursiva – com sensibilidade, força e coragem – as centenas de famílias venezuelanas que vivem no Brasil, especificamente em Roraima, trabalham e lutam para viver de forma criativa e honesta, contribuindo com os números da economia local, mesmo em um estado construído com fortes laços no preconceito contra as maiorias minorizadas, dentre estas, os afro-indígenas, os migrantes, PcDs, LGBTQIAPN+ e as mulheres.

O cinema de Zamora tem a virtude pedagógica de demonstrar a força de uma criança convicta de que tem uma missão: encontrar seu pai vivo – seu herói, seu protetor. Mesmo que para isso enfrente as trapaças e mentiras dos adultos, a fome, as longas distâncias, a pobreza e o cansaço. Tal enfrentamento é percebido nas ações dinâmicas do próprio povo migrante da Venezuela que encontram, muitas vezes, os agouros de uma parte da sociedade que se alimenta da indiferença e do ódio contra o diferente, sob a capa da moralidade vazia.

O filme de Zamora é um mergulho imagético e sonoro nas paisagens fronteiriças, com destaque para as belas cachoeiras, rios, florestas e o majestoso Monte Roraima. O filme traz para as telas a Gran Sabana, região localizada no sul da Venezuela, Planalto das Guianas, que vai do sudeste do Estado de Bolívar à fronteira com o Brasil. O filme lembra outras trajetórias de personagens em longas aclamados, similares em termos de aventura e dinâmica geográfica. Destaque para “Na Natureza Selvagem” (2007), road movie filmado nos Estados Unidos que traz a jornada de Chris McCandless em sua busca pela liberdade peregrinando pelo Alaska, Dakota do Sul, Califórnia, Arizona, Oregon e Washington, embalado pela trilha sonora interpretada por Eddie Vedder (Pearl Jam). São filmes de busca, contemplativos, mas cheios de ação, nos quais as belas trilhas sonoras compõem a narrativa. Sem dúvidas, o diferencial em “El Salto” é a presença de um sábio guia afro-indígena que acompanha o ator mirim em sua longa trajetória, colaborando, entrando em conflito, enfrentando os limites do corpo e lutando para sobreviver. O ancião ressurge de forma ancestral aos pés do Monte Roraima, permitindo uma das fotografias mais imponentes da obra audiovisual.

Para além das questões técnicas do filme em tela que envolve: emoção construída a partir do roteiro, de diálogos, subtextos (mensagens implícitas), a qualidade da direção, do elenco, a bela fotografia, o uso equilibrado de jump cuts (saltos propositais na edição de imagens), a memória visualizada, o ritmo envolvente da montagem e a criativa trilha sonora autoral, o que percebe-se é um filme sobre a condição humana, que transmite para o primeiro plano a resistência, movimento e a força da natureza da Gran Sabana e daqueles que escolheram estas terras para viver.

O diretor de El Salto de Los Angeles compõe um time diverso de cineastas, diretores (as), montadores (as), fotógrafos (as), atrizes e atores venezuelanos (as) premiados (as) que, morando em Roraima, estão transformando o modo de ver o cinema de fronteira, dando uma grande contribuição ao audiovisual e a cultura roraimense. Com formação técnica refinada e carisma próprio dos latinos, os artistas venezuelanos têm ampliado a possibilidade de compreensão da importância dos valores culturais transnacionais, de raiz afro-indígena, da alegria de um povo que resiste e celebra a vida e a arte.

Éder R. dos Santos é doutor em Geografia Cultural, cineasta, jornalista, sociólogo, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas (GEP Cultura/UNIR), membro associado da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP), conselheiro da Associação Roraimense de Cinema e Produção Audiovisual Independente e do Comitê Pró-cultura Roraima. E-mail: [email protected].