

Desde a década de 1990, boa parte dos políticos que estão no poder, em Roraima, se elegeu pregando a “paranoia da internacionalização da Amazônia”, que ocorreria a partir de Roraima. Na verdade, tratava-se de um espantalho para atacar os direitos dos povos indígenas, especialmente a demarcação de suas terras, os colocando como agentes do entreguismo, a fim de abrir as terras para o garimpo. Ao longo das décadas, esses políticos se elegeram, as demarcações acabaram ocorrendo e os parlamentares foram mudando seus discursos até chegar à defesa aberta ao garimpo ilegal, sem rodeios.
Nesse mesmo tempo, a geopolítica mundial se remodelou e os interesses das grandes potências se voltaram para a América do Sul, mas com o petróleo bruto seguindo como o sustentáculo da economia energética global, influenciando desde o transporte e a manufatura até a geopolítica e a segurança nacional dos países. E a nossa vizinha Venezuela detém as maiores reservas provadas de petróleo bruto do mundo, estimadas em aproximadamente 303 bilhões de barris em 2024.
Apesar de todo esse petróleo, a produção venezuelana definhou não só devido à instabilidade econômica e problemas de infraestrutura de um governo que pegou o caminho perigoso da ditadura, mas por causa das sanções internacionais impostas pelos EUA, desde 2017, sob o argumento de combater a crise humanitária e repressões políticas. Com a volta de Trump em 2024, as ameaças escalaram para ações militares diretas a partir de agosto de 2025, com ações agressivas e ameaças de invasões ao território venezuelano.
Enquanto os EUA faziam o cerco à Venezuela, sob acusação de ser um país narcoterrorista, estava sendo armada uma investida contra o Brasil ainda no governo Bolsonaro, cuja família do então presidente sempre ostentou amor aos EUA, inclusive com o próprio batendo continência à bandeira norte-americana. Em 2020, estava em curso um projeto de tentar legalizar o garimpo em terras indígenas na Amazônia para atender aos interesses de empresas multinacionais americanas e canadenses, conforme denúncias do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Fazia parte do grande plano nomear o deputado federal Eduardo Bolsonaro como embaixador nos EUA, que acabou não ocorrendo.
O Estado de Roraima chegou até aqui com uma migração em massa de venezuelanos devido à crise no país vizinho e uma nova invasão garimpeira à Terra Indígena Yanomami (na fronteira com a Venezuela) patrocinada pelo governo passado e, mais recente, à Terra Indígena Raposa Serra do Sol (na fronteira coma Guiana), com o fortalecimento do crime organizado a partir das frentes do garimpo ilegal, cujas facções Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV) se aliaram a facções venezuelanas, especialmente El Tren de Aragua, que chegou inclusive aos EUA e foi classificada como grupo narcoterrorista.
Nesse interim, os EUA já sabiam que Roraima estava prestes a ser anunciado como novo marco histórico da mineração mundial, o que acabou se concretizando neste ano no Município de Caracaraí, onde foi identificada a maior concentração de terras raras já registrada no planeta, em uma área de 100 mil hectares abrigando três categorias de minerais estratégicos: terras raras, metais do grupo da platina (PGMs) e minerais críticos. Terras raras são fundamentais para a tecnologia moderna, presentes em smartphones, computadores, televisores, carros elétricos, turbinas eólicas, painéis solares e sistemas de defesa militar.
Não foi à toa que Trump agiu rápido para aplicar sansões comerciais contra o Brasil sob argumento de que seu aliado, o ex-presidente Bolsonaro, estaria sofrendo perseguições políticas, pois interessa aos EUA a volta dele ao poder como presidente para seguir com a estratégia entreguista montada lá atrás. E foi assim que ocorreu o exílio voluntário de Eduardo Bolsonaro aos EUA a fim de negociar as sanções em troca de anistia ao pai ex-presidente, algo que não vingou depois que Trump e o presidente Lula se entenderam.
Trump ainda tentou uma jogada sorrateira. Em maio deste ano, o governo dos EUA solicitou ao Brasil que classificasse as facções criminosas PCC e CV, as quais estão presentes em Roraima, como organizações terroristas, proposta negada pelas autoridades brasileiras sob argumento de que a legislação nacional não permite tal classificação para grupos cuja motivação principal é o lucro, e não ideológica ou religiosa. Seria a grande jogada, pois reconhecer facções criminosas como grupos terroristas significaria que, no Brasil, existiriam terroristas.
Reconhecer que dentro do Brasil haveria terroristas – e que não teria capacidade de combatê-los – era a senha para a comunidade internacional aliada dos norte-americanos declarar o país como uma ameaça global, assim como estão fazendo com a Venezuela. A legislação dos EUA permite que eles invadam e deponham o presidente de países narcoterroristas, levando o petróleo e as terras raras, como sempre ocorreu durante ocupações militares, golpes de Estado apoiados pela CIA, sanções econômicas e operações encobertas. De 1898 até 1994, os EUA intervieram para mudar governos 41 vezes mundo afora.
Logo, a Venezuela tornou-se estratégica. E o Estado de Roraima seria a porta de entrada para uma silenciosa e ainda invisível ação estratégica para transformar a Amazônia em uma “zona de segurança internacional”. A vizinha Guiana já está sob domínio dos EUA e do Reino Unido a partir da descoberta de petróleo, quando aquele país se transformou em um paraíso da ExxonMobil, sob a proteção do governo norte-americano e com reforço militar da Inglaterra. A aliança estratégica permite um corredor pelo mar, com controle por terra em Essequibo (território este que já pertenceu ao Brasil) e todo o arco setentrional que inclui as fronteiras de Roraima.
E aqui está, desta vez não como paranoia, mas como estratégia geopolítica, o plano de internacionalizar a Amazônia a partir de Roraima. Os EUA não querem transformar a Venezuela em “novo Vietnã” na floresta amazônica. Querem manter uma política imperialista de controle internacional sobre a Amazônia como forma de controlar as riquezas e ecossistemas estratégicos. E o argumento é de que o Brasil e outros países não conseguem mais proteger e cuidar da Amazônia. Por isso o boicote à COP 30, classificada como um evento do “ambientalismo modinha”, que serviria mais para o ego de “ambientalistas influencers” do que salvar realmente a floresta.
O novo discurso é de que “a região é ingovernável, violenta e incapaz de se proteger”, cuja “solução sugerida é sempre a mesma: ampliar vigilância externa, impor governança internacional e consolidar presença militar e tecnológica ocidental”, chamada de “neocolonialismo verde — a ocupação sem tropas, disfarçada de salvação global”, conforme analisa o jornalista Reynaldo Aragon, especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento, pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI).
Roraima serve muito bem ao novo propósito. O governo local faz vistas grossas para o avanço do crime organizado transnacional a partir do garimpo ilegal, onde os políticos em sua totalidade são aliados do bolsonarismo. Serve muito bem aos propósitos dos EUA, cuja narrativa é de que “a floresta é um território fora de controle, dominado por facções, garimpo armado, rotas de cocaína e destruição ambiental” (Aragon). E isso é real porque se tornou uma política que serve de laboratório para a narrativa imperialista.
“Nenhuma intervenção avança apenas pela força externa. Ela precisa de elites internas dispostas a abrir caminho. Na Amazônia, parte significativa do agronegócio, da mineração e da classe política regional atua alinhada aos interesses do capital transnacional. Essas frações de classe enxergam vantagem na perda de soberania: ganham financiamento, proteção, certificações internacionais e acesso privilegiado a mercados que elas próprias não controlam”, escreveu Reynaldo Aragon.
Os fatos indicam que Roraima se tornou no laboratório da narrativa de que a floresta amazônica está fora de controle e dominada por narcoterroristas. E as facções venezuelanas, que agem de forma audaciosa em Boa Vista, parecem confirmar isso. Não fosse a atuação firme e rápida do atual governo no combate ao garimpo ilegal na Terra Yanomami, a fratura estaria exposta para permitir o avanço do novo imperialismo verde, para se apossar da Amazônia não por armas, mas por estratégias sutis e modernas. A Argentina já entregou sua soberania aos EUA sem que fosse disparado um único tiro, por meio de um acordo comercial em que só os argentinos fazem concessões.
O que chama a atenção é que, agora, quando a internacionalização da Amazônia surge como um perigo real, os políticos e a elite locais simplesmente se emudecem. E a História se repete: como no passado do Brasil colônia, os povos indígenas seguem como os únicos defensores das fronteiras, das florestas e contra a internacionalização da Amazônia. Esse novo capítulo ainda está sendo escrito…
*Colunista