Francisco Xavier Medeiros de Castro*
Nunca episódios relacionados à violência criminal e à influência do crime na sociedade haviam alcançado a atual projeção, suficiente para ressignificar o discurso sobre a segurança pública no Brasil e redefinir os rumos da política de enfrentamento à criminalidade organizada. Historicamente relegado às políticas dos governadores, o tema da segurança agora ocupa um lugar central na pauta do legislativo e do executivo federal. E não é pra menos. Em um rápido esforço de memória, somos capazes de enumerar quase uma dezena de eventos ocorridos em um curto espaço de tempo e que reiteram o grande impacto que o crime organizado exerce na rotina social, econômica e política dos brasileiros: a morte de um delator do PCC, em plena luz do dia, no aeroporto mais movimentado do Brasil; o assassinato cruel de um delegado em São Paulo; o êxodo imposto por criminosos aos moradores de um distrito urbano do Ceará; a investigação e cassação de prefeitos acusados de terem suas campanhas financiadas por facções criminosas; a descoberta de uma grande rede de fundos de investimentos e fintechs usados pelo crime organizado na lavagem de dinheiro e, por fim, a operação policial nos complexos do Alemão e da Penha, motivada, entre outros fatores, pelo intercâmbio de dezenas de criminosos oriundos de outras regiões do país que se encontravam escondidos naquelas comunidades.
Com o notório crescimento da criminalidade organizada nas cidades e vilarejos, e sua infiltração nos setores formais da economia e no próprio meio político, o debate público e acadêmico vem se aprofundando nas análises sobre a estrutura, expansão e dinâmica das organizações criminosas, facções, milícias e máfias.
Mas afinal, o que distingue cada um desses termos? E qual a importância em diferenciá-los?
Definida pela Lei nº 12.850/2013, organização criminosa é considerada como um gênero que abrange as estruturas que associam quatro ou mais pessoas, organizadas e com divisão de tarefas, para aferir vantagens por meio de infrações cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos de reclusão, ou que possuam caráter transnacional. Sob esse “guarda-chuva”, estão abrigadas tanto as organizações criminosas não violentas – a exemplo dos grupos que se dedicam à corrupção sistêmica, fraudes financeiras, desvio de recursos público, branqueamento de capitais, entre outros – como também as facções criminosas. Atualmente, a pena atribuída a quem promove, constitui, financia ou integra organização criminosa varia de 3 a 8 anos de reclusão, além de multa.
Considerada como uma espécie pertencente ao gênero “organização criminosa”, a facção se caracteriza por se originar, via de regra, no sistema prisional, mantendo-se fortemente vinculada às cadeias através de seus membros e principais lideranças. Apresenta estrutura fortemente hierarquizada, com rígida disciplina interna baseada em códigos próprios de conduta. Desenvolve o controle prisional e territorial, subjugando total ou parcialmente as comunidades através do uso da força e do terror. Nos últimos anos, têm apresentado um indubitável interesse expansionista, passando a atuar em mais de um estado, região ou país. São exemplos clássicos: o Primeiro Comando da Capital, o Comando Vermelho, o Trem de Aragua e demais grupos de origem prisional. A penalização imposta pela legislação corresponde à pena que é atribuída à participação em organização criminosa, acrescidas das penas correspondentes às demais infrações praticadas.
A máfia pode ser considerada como um estágio alcançado pelas organizações criminosas quando passam a inovar e incorporar à atividade criminosa o uso do mercado legal para a lavagem de dinheiro, a infiltração no meio político – através do financiamento de campanhas e da participação em licitações e contratos do poder público -, a intimidação de pessoas e a corrupção de agentes públicos. A máfia não abre mão da imposição do medo com ameaças e assassinatos de desafetos, concorrentes ou pessoas que ousam afrontar o seu poder. Cada vez mais, facções como o PCC vem se aproximando do modelo observado nas máfias italianas (Cosa Nostra, N’Drangueta e Sacra Corona Unita). Um exemplo da dinâmica mafiosa da facção paulista se verifica pela valorização dos conceitos de família (do crime), poder, respeito e território.
Já a milícia, nomeada como “milícia privada” no artigo 288-A, do Código Penal brasileiro, se caracteriza por “constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos” naquele código, sendo atribuída pena que, atualmente, varia de quatro a oito anos de reclusão, com a expectativa de aumento caso seja aprovado o projeto de lei do marco legal contra o crime organizado, em tramitação no congresso nacional. Apesar de ter sua máxima expressão nas comunidades cariocas onde são exercidos o domínio territorial violento por esses grupos, há casos de milícias privadas constituídas por agentes de segurança pública que se utilizam da estrutura do estado ou de seus cargos para atividades ligadas à segurança privada de criminosos e ao fornecimento de armas e munições para facções criminosas que exploram atividades como o garimpo ilegal.
Portanto, mesmo que possamos considerar a facção, a milícia e a máfia como exemplos de organizações criminosas (espécies pertencentes a um único gênero), seria um erro conceitual considerar a organização criminosa como sinônimo irrestrito de facção, milícia ou máfia.
Nesse sentido, apesar de nem todos esses termos serem conceituados pela lei, a legislação criminal que está prestes a ser renovada no congresso nacional visa qualificar a pena dos crimes praticados pelas organizações criminosas que objetivam o domínio territorial através do emprego de violência ou grave ameaça (facções e milícias) e que também operam através do conexão com outras organizações criminosas, da infiltração no setor público, através da participação de funcionário público com proveito de sua condição para a prática de infração penal (organizações mafiosas), além de outras qualificadoras, equiparando, pelo critério de lesividade, essas ações criminosas a atos terroristas, com pena reclusão que pode variar de 20 a 40 anos. Esses crimes também passam a ser inseridos na lei de crimes hediondos, ficando, portanto, insuscetíveis de anistia, graça ou indulto.
O entendimento dessas nuances qualifica a atual discussão sobre segurança pública e favorece a compreensão do aspecto técnico das iminentes decisões no âmbito do Poder Executivo e do Poder Legislativo Federal, permitindo-nos ir além do senso-comum propagado pelas redes sociais.
*Coronel PM da ativa e Ex-Comandante Geral da Polícia Militar de Roraima.
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