OPINIÃO

Desumanização: a negação da natureza humana

Sebastião Pereira do Nascimento*

Desde os primórdios da civilização humana, a vida em sociedade é marcada por diversas formas de conflitos (guerras, massacres, chacinas, genocídios, etc) que tanto têm manchado a história da humanidade. Em tempos atuais, tem-se acompanhado o aumento sucessivo desses desígnios perturbadores, confirmando o que o filósofo Delmo Mattos considera que, a todo instante, somos levados a crer que a desumanização parece ser própria da condição humana.

Neste contexto, o termo “desumanização” vem ganhando espaço na literatura universal, onde, a partir de uma reflexão cuidadosa, pode-se perceber um alinhamento direcionado a uma concepção de natureza desnaturada, que é quando o ser humano atua no sentido de desumanizar a si e negar a humanidade plena ao outro.

Com isso, somos conduzidos também a fazer os seguintes questionamentos: A vida ética defendida por Aristóteles não nos cabe mais? Não nos cabe mais acreditarmos na vida virtuosa do ser humano? Logo, como resposta a esses questionamentos, devemos dizer que hoje vivemos numa época de muitas transformações e, diante dessas transformações, devemos sempre renovar os valores humanos, visto que são os princípios morais e éticos que guiam as relações humanas, sendo essenciais para a convivência em sociedade. Renovar esses valores significa nos adaptar às mudanças possíveis, fortalecer a empatia e a responsabilidade social, a fim de construir um mundo mais ético, equitativo e mais humano.

Isso deve ser posto como imprescindível, dado que, na atualidade, o grau de deterioração dos valores humanos é bastante assustador, sobretudo em consequência da nossa incapacidade de lidar com as transformações e a vida em comum. Onde o outro é cada vez mais estranho para nós e está cada vez mais distante de nossa capacidade de vê-loe tratá-locomo um ser humano.

Por conta disso, há quem tema que isso possa ser uma tendência geral, e que essas incorreções sejam incorporadas de forma ainda mais acentuada, com menos compromisso humano e sem julgamento nenhum. Em vista disso, tomamos consciência de que os esforços das pessoas que antes eram usados para as coisas salutares agora são voltados para normatizar coisas nocivas. E a potencialidade humana, que deveria ser um atributo edificante, agora é aliada aos desejos imoderados e ausentes de genuínos significados humanos.

Neste cenário, um dos fatores que contribuíram para que a humanidade atingisse níveis assustadores de desnaturalização acontece a partir do momento em que se pensou em dividir a sociedade em categorias ou classes sociais, onde grupos humanos são tratados de formas diferentes entre si e ocupam lugares diferentes na sociedade, contrariando o próprio princípio natural de igualdade do homem.

Sim, a humanidade se viu mais desumanizada no momento em que o processo de diferenciação social sobrepôs o estado de paridade, promovendo um estado de segregação social. Um estado de vida em que o sujeito mais fraco é despojado de seus direitos e proteção, podendo ser exposto à violência do mais forte, ou seja, o sujeito vive desamparado socialmente numa zona de fronteira entre o estado de direito e o estado de exceção, não sendo nem sujeito de direitos nem de deveres, mas refém de um estado de vida no qual o poder soberano passa a manipulá-lo e explorá-lo à sua maneira.

Com devidas ponderações, podemos comparar esse processo de desumanização ao conceito acerca do “homo sacer”. Um conceito do direito romano arcaico utilizado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben para descrever a “vida nua” do sujeito exposto ao poder soberano, desprovido dos valores humanos essenciais, como uma figura que simboliza a exclusão e o estado de exceção ante uma sociedade desumana. Esse pressuposto de Giorgio Agamben se refere àquele ser humano (ou grupos sociais) que é tornado socialmente morto e cuja “morte” não acarreta nenhuma penalidade contra seus algozes. Isso porque, para a sociedade “soberana”, essa pessoa está “fora da lei” e não merece nenhuma consideração legal, seja do estado ou seja da própria sociedade. 

Isso traz também uma demonstração do quanto a estratificação social contribui para o processo de desumanização da humanidade. Por exemplo, há, no âmago dessas estratificações, uma categoria disforme (às vezes mais de uma) que, de maneira geral, forma a força destrutiva da humanidade. E, dentre as muitas escolhas deletérias próprias dessa categoria disforme, ressalto as abomináveis falhas políticas, éticas e cognitivas, sendo: uma abominação política, porque é totalitária; uma abominação ética, porque é violenta; uma abominação cognitiva, porque é ignorante.

Portanto, é recorrente a violência de um grupo social sobre o outro ou práticas que tratam o outro como “não humano”, impedindo-o de tornar estável sua própria humanidade. Isso torna-se, nesse contexto, uma tônica que serve para legitimar o status quo do opressor frente ao oprimido, dificultando ou impedindo esse último de libertar-se dessa exaustiva relação.

Na mesma perspectiva, as condutas desumanizadas e expressas por grupos sociais soberanos, por meio de discursos e práticas violentas, tentam, dentro das relações de opressão, apresentar determinados seres humanos como não-participantes da mesma humanidade dos outros. Essa distinção, em princípio, serve para justificar a tirania contra aqueles que não fazem parte do modelo humano adotado pela falsa civilização. Isso revela o quanto o sujeito oprimido é forçado a se desfazer de seus valores humanos, na mesma medida em que seus algozes também se desumanizam.

No caso da desumanização instituída — que normatiza a perda dos valores pretéritos da humanidade —, tem-se a execução de atos programados e deliberados de maneira sistemática e estrutural por uma sociedade ou mesmo por um conjunto de sistemas organizados. A palavra “instituída” sugere ainda que a perda de valores humanos não é um ato isolado, mas sim um processo estabelecido por instituições ou práticas sociais que procuram desumanizar o outro, tratando-o como “menor” que um ser humano ou como um objeto sem nenhum valor. 

Não o bastante, quando as diferentes estratificações sociais se unem em prol de interesses mais universais, diluem-se numa massa humana e passam a pensar e agir contra os próprios interesses essenciais, perdendo todo o poder de reação humana. Mas, como categorias que vivem em constantes conflitos, logo passam a se confrontar — revelando suas diferenças sociais —, tornando ainda mais fortalecido o processo de desumanização.

Em muitos casos, esses grupos sociais permanecem na dependência do poder instituído, sendo incapazes de corresponder aos valores humanos mais relevantes. Pois, como trata o filósofo Renato Bittencourt, são socialmente desmobilizados e desprovidos de uma axiologia pujante que lhes permita transformar a ordem estabelecida num auspicioso desenvolvimento humano.

Ainda na visão de Renato Bittencourt, a massa humana, quando é subjugada pelas classes dominantes, torna-se fragilizada emocionalmente e coletivamente, sendo restringida de oportunidades e garantias e utilizada como instrumento de manobra. Isso porque ela se mantém por meio de um sentimento confuso, devido à incapacidade de restaurar a sua natureza, transformadora das verdadeiras essências humanas.

Assim, a humanidade esfacelada em diversas categorias sociais torna-se difícil alcançar um equilíbrio coletivo consistente. Por outro lado, é importante entender que o ser humano é um ser social e, como qualquer ser social, necessita viver numa sociedade que ofereça condições de igualdade entre todas as estratificações sociais, sem distinções. Portanto, urge a necessidade de uma reflexão com mais acuidade acerca da própria animalidade do homem, para que ele possa restituir a capacidade de moderar seus apetites avassaladores. Contudo, nesse processo, ele deve ter cuidado, pois o fato de querer tornar a vida cor-de-rosa, muitas vezes, acaba se violentando e violentando o outro. A não ser que a pessoa seja um sábio que, por definição, é um ser feliz mesmo diante das adversidades.

*Filósofo, professor, escritor e consultor ambiental.

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