Jardel Souza Silva[1]
Os primeiros resultados do Censo Demográfico de 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou um contingente de 1.693.535 pessoas que se autodeclaram indígenas, o que corresponde a 0,83% da população total brasileira. O estado de Roraima apresenta a maior proporção relativa de população indígena do país, correspondendo a aproximadamente 97.320 pessoas que se autodeclaram indígenas.
Esse quantitativo, expressivo em termos proporcionais, posiciona Roraima na quinta colocação em números absolutos, sendo superado pelos estados do Amazonas (490.854), Bahia (229.103), Mato Grosso do Sul (116.346) e Pernambuco (106.634) e em primeiro lugar no tocante ao município com a maior população indígena do país, Uiramutã, com cerca de 96% dos munícipes que se declaram indígenas.
Em termos percentuais, Roraima apresenta a maior proporção desta população em relação ao seu total de habitantes, correspondendo a 15,29%. Na sequência, figuram o Amazonas (12,45%), Mato Grosso do Sul (4,22%), Acre (3,82%) e Bahia (1,62%).
Tais dados evidenciam o lugar expressivo do estado de Roraima no contexto da diversidade étnica nacional, sobretudo quando considerada a densidade relativa da população indígena em relação ao total de habitantes do estado.
No estado de Roraima, observa-se a existência de diversas leis ordinárias que fazem referência, de forma direta ou indireta, a questões relacionadas aos povos indígenas.
Como exemplo, destaca-se a Lei n.º 279, de 2000, de iniciativa do então governador Neudo Campos, que instituiu a Secretaria de Estado do Índio. A Lei n.º 373, de 2003, de iniciativa do então governador Flamarion Portela, instituiu e regulamentou o funcionamento do Grupo Técnico Especializado de Estudos das Áreas Indígenas do Estado de Roraima. No mesmo sentido, merece destaque a Lei n.º 864, de 2012, proposta pelos então deputados Jalser Renier e Chico Guerra, que dispõe sobre o Programa Estadual de Incentivo à Produção em Comunidades Indígenas e que estabelece uma série de medidas voltadas ao fortalecimento econômico dessas comunidades. A Lei n.º 942, de 2013, de iniciativa do então governador José de Anchieta, instituiu o Programa de Incentivo e Apoio à Produção Agrícola Familiar e Indígena no Estado de Roraima. A Lei n.º 1.818, de 2023, de iniciativa do atual governador Antonio Denarium, promoveu a alteração da denominação da Secretaria de Estado do Índio para Secretaria de Estado dos Povos Indígenas (SEPI).
No campo sociocultural, verifica-se uma lacuna relevante: os projetos e leis não fazem referência explícita à implementação das políticas públicas considerando as especificidades culturais, modos de vida e diferentes estágios de organização social dos povos indígenas.
A Lei n.º 1.877, de 2023, de iniciativa do deputado Dr. Meton, institui a Semana da Mulher Indígena no âmbito do estado de Roraima. O diploma normativo tem como objetivo a conscientização, valorização e promoção de ações voltadas às mulheres indígenas.
Do ponto de vista político e social, a lei tem relevância por contribuir para a visibilidade das mulheres indígenas, um segmento frequentemente invisibilizado nas agendas públicas.
No que concerne à violência contra a mulher, vale ressaltar que o estado de Roraima vem ocupando há algum tempo os primeiros lugares nos índices de feminicídio, segundo dados fornecidos pelo Mapa da Violência de 2015 (WAISELFISZ, 2015) e o Atlas da Violência de 2023.
A lei n.° 2055 de 2024, de autoria do deputado Soldado Sampaio, reconhece como patrimônio cultural imaterial do povo roraimense as línguas indígenas faladas no estado, cabendo às instituições públicas promoverem sua difusão, preservação e valorização. Além disso, prevê o reconhecimento futuro de outras línguas que venham a ser revitalizadas após a sua publicação.
Foram declaradas cooficiais ao lado do português as seguintes línguas: Hixkaryana, Ingarikó, Maku, Makuxi, Ninam, Patamona (Kapon), Sanumá, Taurepang (Pemón), Waiwai, Wapixana, Yanomami e Yekwana (Maiongong). A cooficialização não afasta o direito ao aprendizado da língua portuguesa e tampouco deve criar barreiras à integração com a comunidade não indígena, em conformidade com a política estadual de Educação Escolar Indígena.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.499, proposta pelo procurador-geral da República, foi ajuizada em face do art. 300 da Constituição do Estado do Parásob a alegação de violação aos arts. 22, XIV; 129, V; e 231 da Constituição Federal de 1988.
Restou assentado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que a produção normativa relativa às populações indígenas constitui matéria de competência exclusiva da União, nos termos do art. 22, XIV, da Constituição Federal de 1988.
Entretanto, após mais de três décadas de vigência da Constituição Federal e quase cinco décadas de edição do Estatuto do Índio, Lei n.º 6.001/1973, constata-se que as relações jurídicas, sociais, políticas e econômicas entre indígenas e não indígenas evoluíram de forma significativa, gerando novos desafios que demandam releituras e atualizações normativas.
Nesse contexto, torna-se essencial ampliar o debate para além da dimensão formal da competência legislativa, contemplando as peculiaridades regionais e analisando de que maneira os estados — a exemplo de Roraima, que possui a maior proporção de população indígena do país — vêm implementando serviços públicos, políticas sociais e mecanismos de inclusão voltados a essa parcela minoritária da população.
O jurista Thimotie Heemann apresenta relevante reflexão acerca do papel do legislador na produção normativa relativa aos direitos indígenas e sobre a necessidade de sua revitalização e atualização. Segundo o autor o Estatuto do Índio, Lei nº 6.001/1973, embora pioneiro em seu tempo, não acompanha a evolução constitucional, jurisprudencial e internacional ocorrida nas últimas décadas, sobretudo após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a ratificação de instrumentos como a Convenção 169 da OIT.
Em síntese, ainda que a jurisprudência atual imponha restrições, a realidade sociopolítica brasileira aponta para a necessidade de revisitar o modelo de competência privativa da União, de modo a reconhecer um papel mais ativo dos estados, sobretudo na execução normativa e administrativa de políticas públicas voltadas às populações indígenas. Trata-se de uma pauta que exige diálogo legislativo, constitucional e intercultural, como condição para a construção de um federalismo mais inclusivo e responsivo às demandas das comunidades originárias.
[1] Aluno do curso de Mestrado Profissional em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania da UERR. Graduado em História pela UFRR e em Direito pelas Faculdades Cathedral.E-mail:[email protected]
Jardel Souza Silva
Consultor legislativo da ALE/RR
Graduado em história e Direito
Mestrando em segurança em pública na UERR