DIREITO DE EXISTIR

Idoso em situação de rua faz registro de nascimento pela primeira vez aos 75 anos em mutirão da Defensoria

Após décadas vivendo sem documentos, Marconi Alves da Cruz finalmente teve sua existência reconhecida pelo Estado

Marconi Alves da Cruz, de 75 anos, coleta digitais para emissão do primeiro Registro Geral (RG), após conquistar a certidão de nascimento. (Foto: Arquivo pessoal/Kelly Silva)
Marconi Alves da Cruz, de 75 anos, coleta digitais para emissão do primeiro Registro Geral (RG), após conquistar a certidão de nascimento. (Foto: Arquivo pessoal/Kelly Silva)

Depois de uma vida inteira sem documentos, Marconi Alves da Cruz, de 75 anos, conseguiu pela primeira vez provar sua existência diante do Estado. Morador de rua em Caroebe, ele recebeu no dia 29 de agosto a certidão de nascimento e, em 2 de setembro, o Registro Geral (RG), documento de identidade. A conquista só foi possível graças à ajuda de uma moradora do município e ao apoio da Defensoria Pública de Roraima (DPE-RR) durante o Mutirão Previdenciário realizado em maio deste ano no Sul do Estado. 

A conquista foi possível graças ao Mutirão Previdenciário realizado pela Defensoria Pública. (Foto: Nilzete Franco/ FolhaBV)

Kelly Silva, a moradora que ajudou Marconi, conta que o conhecia apenas de vista, quando ele ainda trabalhava capinando e aplicando veneno em quintais. Com a saúde fragilizada e a exposição a agrotóxicos, ele perdeu a capacidade de trabalhar e passou a viver em situação de rua, dormindo embaixo de um galpão de oficina.

Ela relata que só tomou consciência da gravidade da situação do idoso quando soube que ele recebia ajuda de um conhecido, que já não podia continuar auxiliando-o. Diante do estado de desnutrição e vulnerabilidade de Marconi, passou a levar marmitas diariamente.

“Ele era um senhor bem saudável, e eu o reencontrei totalmente desnutrido, os olhos fundos, parecia que não tinha brilho, já quase sem vida mesmo. Muito triste. Aí percebi: não basta eu dar um prato de comida, porque eu viajo muito para Boa Vista, sempre estou saindo, e quando saio não tem ninguém para dar comida a ele. Ele acaba passando muita necessidade. Então percebi que não adiantava só um prato de comida. Ele precisava ter um lugar, ter uma vida digna, comprar roupa, remédios”, relatou Kelly.

Ela também o levou ao posto de saúde, onde Marconi recebeu atendimento para diabetes, que agravava ainda mais sua situação de vulnerabilidade. Kelly buscou registros em cartórios e informações no Sistema Único de Saúde (SUS), mas nada indicava que ele tivesse algum documento. “Era como se não existisse no mundo”, contou.

O papel da Defensoria

Carreta dos Direitos realiza atendimento por munícipios de Roraima. (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

Foi em meio à passagem da Carreta dos Direitos pelo município que Marconi teve a chance de mudar a situação. Kelly o levou para atendimento na unidade itinerante e lá conheceu Gabrielle Corrêa Teixeira, assessora jurídica da Defensoria Itinerante, que iniciou o processo de registro tardio.

Segundo Gabrielle, o primeiro passo foi ouvir a história de Marconi e levantar todas as informações possíveis. “Em conversa com ele, eu peguei o nome, o nome do pai, o nome da mãe. Verifiquei se tinha família, se tinha filhos, se havia algum vínculo familiar. Ele foi relatando e nós fomos trabalhando, aos poucos, com os dados que tínhamos, mas tudo deu negativo”, contou.

Ela explicou que até mesmo a perícia papiloscópica foi realizada, mas também não trouxe resultados. “Ele fez a perícia papiloscópica e o resultado mostrou que ele não tinha documentação nenhuma, pelo menos no estado. Então, trabalhamos com a hipótese de registro tardio, uma pessoa que talvez nunca tivesse tido certidão de nascimento”.

Sem localizar registros em cartórios de Araguaína (TO), Buriti Alegre e Rio Verde (GO), cidades por onde Marconi teria passado e onde nasceu, a Defensoria ingressou com a ação judicial. “Com o resultado negativo da perícia papiloscópica, nos cartórios das regiões por onde ele passou e onde teria nascido, nós demos entrada na ação. E agora, graças a Deus, deu certo”, destacou Gabrielle.

Mutirão Previdenciário em Caroebe

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O caso de Marconi foi iniciado durante o Mutirão Previdenciário, realizado de 19 a 23 de maio de 2025 em Caroebe e São João da Baliza. A ação reuniu diversos órgãos para oferecer serviços previdenciários e de cidadania gratuitos, atraves da Carreta dos Direitos.

Entre os atendimentos, estavam pedidos de aposentadoria, salário-maternidade, auxílio-doença, além da emissão de documentos como CPF e Carteira de Identidade. Foi nesse contexto que o idoso pôde iniciar o processo para finalmente existir perante o Estado.

Carreta dos Direitos

Carreta dos Direitos, da Defensoria Pública de Roraima, oferece serviços de cidadania a bairros afastados do Centro e a municípios do interior. (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

Criada em 2014 pelo programa Defensoria Itinerante, a Carreta dos Direitos leva serviços de cidadania, assistência jurídica e atendimentos sociais para áreas distantes do centro de Roraima. A iniciativa ampliou o alcance da Defensoria, permitindo que mais pessoas tivessem acesso a serviços jurídicos e sociais.

Segundo Régis Braga, coordenador da Defensoria Itinerante, a carreta reúne parceiros como Receita Federal, INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), Justiça Federal, CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), Sebrae e Tribunal Regional do Trabalho. “Entre os serviços oferecidos estão emissão de RG e CPF, acompanhamento de benefícios previdenciários, demandas trabalhistas, orientações sobre empreendedorismo e ações de registro civil tardio, como no caso de Marconi”, explicou.

Regis Braga, coordenador da Defensoria Intinerante em entrevista à FolhaBV. (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

Ele acrescentou que, em 2025, apenas no primeiro semestre, foram realizados mais de 4.800 atendimentos. “A carreta também percorre o interior do estado, realizando edições especiais como o Mutirão Previdenciário em Caroebe, São João da Baliza e Pacaraima, e projetos específicos como o Direito de Existir, voltado para pessoas que nunca tiveram registro civil ou perderam documentos”, disse.

Régis explicou que os bairros atendidos são escolhidos com base em estudos do perfil populacional e da renda, priorizando áreas mais distantes e com maior demanda de serviços.

Carreta dos Direitos durante passagem ao bairro Raiar do Sol em Boa Vista. (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

Um novo começo 

Agora, com os documentos em mãos, Marconi passa a ter acesso a serviços básicos, como atendimento de saúde, além da possibilidade de solicitar uma aposentadoria.

Kelly, que continua ajudando Marconi com alimentação e cuidados básicos, afirmou que o idoso agora se sente reconhecido. “Ele me disse que agora se sente gente, porque viver sem documento é como não existir. O meu desejo é que ele consiga um benefício para não depender somente da bondade dos outros”, concluiu.

A expectativa é que, com os documentos, Marconi consiga mais autonomia e condições mínimas para uma vida digna.

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