Ronildo Rodrigues dos Santos
Cientista Social
Em 2025, Roraima celebra 300 anos da presença missionária católica em seu território. Esse marco não é apenas religioso, mas profundamente social e político, pois a história da Igreja na região se confunde com a própria formação do estado. Da chegada dos primeiros missionários no século XVIII às ações contemporâneas de acolhimento a migrantes e defesa dos povos indígenas, a trajetória católica em Roraima revela tanto contradições quanto uma força histórica de resistência e solidariedade.
As primeiras incursões missionárias no Rio Branco, ainda no século XVIII, encontraram povos originários como Makuxi, Wapichana e Yanomami. A catequese veio acompanhada de uma dupla tarefa: difundir a fé cristã e proteger comunidades indígenas da escravização e dos abusos coloniais. Não foram relações isentas de tensões afinal, a evangelização também trouxe imposições culturais e religiosas. Porém, ao longo do tempo, os missionários desempenharam papel de mediação em conflitos, tentando garantir a sobrevivência de populações pressionadas pela expansão colonial.
Entre os maiores legados da Igreja em Roraima está a defesa intransigente dos povos indígenas. O trabalho da Missão Consolata, presente desde 1948, foi determinante na luta pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e na denúncia das invasões e da exploração predatória. Até hoje, a Diocese mantém presença junto a comunidades Yanomami, Ye’kwana, Ingarikó, Macuxi e Wapichana, reafirmando seu compromisso com a vida e a dignidade dos povos originários. Num contexto em que o garimpo ilegal ameaça florestas e rios, a voz profética da Igreja tem sido essencial.
Nos anos 1970 e 80, a Igreja em Roraima foi atravessada pelo impulso das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Teologia da Libertação. Nascidas do chão amazônico, essas experiências fortaleceram a organização popular, promoveram direitos sociais e aproximaram fé e vida cotidiana. A religiosidade popular, com suas expressões inculturadas, tornou-se espaço de protagonismo comunitário e resistência frente às desigualdades.
Na educação e na saúde, a presença católica também deixou marcas profundas. Escolas comunitárias surgiram em áreas indígenas e rurais, possibilitando alfabetização e formação básica em regiões onde o Estado era ausente. Religiosas e religiosos estiveram à frente de hospitais, postos de saúde e iniciativas humanitárias, consolidando uma atuação voltada não apenas à evangelização, mas ao cuidado integral da vida.
Nos últimos dez anos, a Diocese de Roraima ganhou destaque internacional pelo acolhimento a migrantes e refugiados vindos da Venezuela. Através da Cáritas Diocesana, em parceria com agências da ONU e a sociedade civil, milhares de pessoas foram atendidas com alimentação, abrigo, orientação legal e apoio espiritual. Essa resposta humanitária mostrou, mais uma vez, que a fé cristã, quando enraizada na solidariedade, ultrapassa fronteiras nacionais e se transforma em gesto concreto de esperança.
A atuação política e social da Diocese não pode ser subestimada. Suas lideranças se posicionaram contra a grilagem, o desmatamento e o avanço do garimpo em terras indígenas. A defesa da Amazônia e dos direitos humanos tornou-se parte do próprio anúncio do Evangelho. Em Roraima, a voz da Igreja ecoa não apenas nos altares, mas também nas assembleias populares e nos debates públicos, recordando que fé e justiça caminham juntas.
Ao longo desses 300 anos, a evangelização católica também se expressou em celebrações e manifestações culturais. Romarias, festas de santos e grandes encontros de fé consolidaram uma identidade amazônica católica que integra símbolos indígenas, línguas locais e elementos da cultura regional. Trata-se de uma evangelização que busca se enraizar no chão da Amazônia, respeitando e dialogando com as identidades que a compõem.
Celebrar 300 anos de presença missionária em Roraima não significa ignorar as ambiguidades da história. É reconhecer que a Igreja errou ao impor práticas culturais, mas também acertou ao se colocar, em muitos momentos, ao lado dos pobres, dos indígenas e dos migrantes. É compreender que a evangelização aqui foi, sobretudo, um processo de resistência, solidariedade e construção de cidadania.
Mais do que olhar para o passado, este marco convida a pensar o futuro: uma evangelização comprometida com a vida plena, com a defesa da Amazônia e com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Em Roraima, fé e luta social seguem caminhando de mãos dadas, como têm feito ao longo desses três séculos.