Ronildo Rodrigues dos Santos
Cientista Social
O documentário Apocalipse nos Trópicos não é apenas uma produção cinematográfica de denúncia; é uma convocação à reflexão crítica sobre os rumos que o Brasil vem tomando nas últimas décadas. Ao explorar a ascensão meteórica do movimento evangélico no país e seu papel central na eleição de Jair Bolsonaro, o filme nos leva a uma interrogação urgente: estamos à beira de uma teocracia tropical?
A obra escancara aquilo que muitos já percebiam, mas poucos ousavam nomear com clareza, a transformação do campo religioso evangélico em um poderoso ator político. A eleição de Bolsonaro, como demonstra o documentário, não foi apenas o resultado de um fenômeno político-partidário, mas o ápice de uma aliança entre setores religiosos fundamentalistas e o discurso de ultradireita, que encontrou ressonância em um eleitorado cansado, desencantado e ansioso por segurança, moralidade e salvação.
Mas essa mistura entre fé e política está longe de ser inofensiva. O que Apocalipse nos Trópicos revela com precisão é a construção de um novo conservadorismo que não se limita a posições morais. Trata-se de um projeto de poder que busca moldar o Estado a partir de uma lógica religiosa, comprometendo os pilares da democracia laica e ameaçando as liberdades civis. A mobilização das igrejas evangélicas, especialmente das neopentecostais, vai muito além dos púlpitos. Está nas redes sociais, nos programas de televisão, nas bancadas do Congresso e nas decisões de governo. É um projeto que visa hegemonia.
O documentário, com sua narrativa firme e fundamentada, desmonta a ideia de que essa presença evangélica no poder é uma simples representação de fé popular. O que está em jogo, como bem aponta o filme, é a tentativa de transformar convicções religiosas em norma jurídica, doutrina de Estado e critério de cidadania. Ao abraçar abertamente a pauta evangélica, marcada pelo moralismo, pela demonização das minorias e pela intolerância às diferenças, o bolsonarismo inaugura uma era em que a laicidade do Estado passa a ser não só questionada, mas frontalmente atacada.
Mais do que um diagnóstico, Apocalipse nos Trópicos oferece um alerta. A narrativa construída ao longo do documentário aponta para o risco concreto de erosão das garantias democráticas sob o pretexto de valores cristãos. Não se trata de demonizar a fé ou os fiéis, até porque a religiosidade popular é parte essencial da história e da identidade brasileira, mas de problematizar o uso político da religião como instrumento de dominação. E, nesse sentido, a obra é contundente: quando a fé se transforma em arma de controle social, estamos diante de um projeto autoritário disfarçado de salvação nacional.
Importa destacar que essa movimentação não ocorre no vazio. Ela se articula com a crescente precarização das condições de vida da população, com a falência das instituições de representação política e com o abandono das políticas públicas. O avanço do discurso evangélico conservador se dá, também, como resposta ao vácuo deixado por um Estado ausente. Em muitos territórios periféricos, as igrejas são a única presença contínua, oferecendo acolhimento, sociabilidade e até assistência. Mas é justamente essa presença que dá suporte à sua legitimidade política, e isso exige uma resposta à altura dos setores progressistas e democráticos.
Nesse contexto, trago à tona uma reflexão necessária: a ascensão do movimento evangélico fundamentalista não deve ser vista como mera tendência religiosa, mas como um fenômeno político que exige ação. É preciso defender com firmeza a separação entre Igreja e Estado, não como hostilidade à fé, mas como garantia de liberdade para todos os credos e para os que não professam nenhum. O Estado brasileiro é, por definição constitucional, laico, e essa laicidade é condição básica para a convivência em uma sociedade plural, onde diferentes formas de vida, crença e pensamento possam coexistir sem perseguição ou privilégio.
Apocalipse nos Trópicos nos convoca, portanto, a um compromisso ético com a democracia. A luta não é contra a religião, mas contra seu uso como aparato de poder e coerção. A defesa dos direitos humanos, da diversidade, das liberdades individuais e do Estado de Direito não pode ceder ao avanço de um autoritarismo ungido. Precisamos agir politicamente para garantir que o Brasil não mergulhe em um futuro de intolerância disfarçada de redenção.
Diante disso, o documentário se transforma em um instrumento pedagógico. Ele nos obriga a fazer as perguntas certas: que tipo de sociedade queremos construir? Qual o limite entre fé e política? Estamos dispostos a aceitar que uma só doutrina religiosa determine os rumos de um país tão diverso e desigual? Ou vamos, enfim, erguer uma resistência em nome da democracia, da justiça social e da dignidade humana?
O Brasil está em disputa. E Apocalipse nos Trópicos nos lembra que o futuro não está garantido, ele depende da coragem de resistir e da urgência de agir.