Ronildo Rodrigues dos Santos
Cientista Social
Há 35 anos, o Brasil dava um salto civilizatório com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13 de julho de 1990. Essa lei representou uma ruptura com a lógica da “situação irregular” que marcava o tratamento dispensado às infâncias vulnerabilizadas até então, substituindo o viés punitivista pela doutrina da proteção integral. Inspirado pelo artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos plenos de direitos, o ECA consolidou a responsabilidade compartilhada entre Estado, sociedade e família na promoção do bem-estar infantojuvenil.
De lá para cá, importantes avanços jurídicos e institucionais foram conquistados, moldando um marco normativo que é, hoje, referência internacional. Em 1991, foi criado o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), responsável por formular e fiscalizar políticas públicas. Em 2000, a Lei da Aprendizagem passou a garantir formação técnico-profissional a adolescentes a partir dos 14 anos, aliando educação e inserção digna no mundo do trabalho.
O Novo Código Civil de 2002 reforçou o princípio do melhor interesse da criança nas questões de guarda e adoção. Em 2009, a Lei da Adoção facilitou o acesso à informação e promoveu mais celeridade nos processos. Em 2012, a criação do SINASE sistematizou a execução das medidas socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei, reforçando a função pedagógica e não apenas punitiva dessas medidas.
O ano de 2014 foi emblemático. A chamada Lei Menino Bernardo proibiu castigos físicos, afirmando o direito à educação sem violência. O Marco Civil da Internet incluiu dispositivos de proteção à infância no ambiente digital, e o Plano Nacional de Educação estabeleceu metas de universalização e qualidade do ensino.
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Outros marcos relevantes incluem o Marco Legal da Primeira Infância (2016), com políticas específicas para os primeiros anos de vida; a Lei da Escuta Especializada (2017), que evita a revitimização de crianças e adolescentes vítimas de violência; e diversas normas a partir de 2019 que ampliaram a rede de proteção: da prevenção da gravidez precoce (Lei 13.798) à proteção contra violência em escolas (Lei 14.811/24), da ampliação do teste do pezinho (Lei 14.154/21) ao Cadastro Nacional de Crianças Desaparecidas (Lei 14.548/23). Todas essas legislações sinalizam que o Estado brasileiro reconhece, ao menos formalmente, a prioridade absoluta dos direitos da infância e adolescência.
Contudo, a distância entre o que está escrito na lei e o que se realiza na prática ainda é abissal. Os dados mais recentes do Mapa da Violência revelam um cenário alarmante: em 2023, mais de 115 mil crianças e adolescentes foram vítimas de violência no Brasil — um aumento de 36,2% em relação a 2022. O trabalho infantil, embora combatido por diversas frentes, ainda atinge cerca de 1,6 milhão de crianças e adolescentes, muitas delas submetidas às piores formas de exploração.
Na área da educação, 1,4 milhão de crianças entre 4 e 5 anos estavam fora da escola em 2024. Os impactos da crise climática também são sentidos na garantia de direitos: mais de 1,17 milhão de crianças e adolescentes tiveram seus estudos interrompidos por causa de enchentes, secas e outros eventos extremos, segundo o UNICEF. Tais indicadores escancaram as vulnerabilidades estruturais que ainda marcam a infância brasileira.
Os alertas vêm também do plano internacional. O Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança apontou graves violações no Brasil, incluindo discriminação, violência sexual, falhas na justiça juvenil, crise climática, desmatamento e aumento da pobreza. O Comitê recomendou ações urgentes para superar tais desafios, em especial no campo da saúde mental e da proteção integral em territórios mais negligenciados.
Além disso, ainda persiste o desafio de ampliar o reconhecimento e valorização do papel dos Conselhos Tutelares, órgãos fundamentais na defesa dos direitos das crianças, mas que seguem, em muitos municípios, precarizados, politicamente fragilizados e alvos de desinformação. Fortalecer essas estruturas é condição essencial para dar concretude aos princípios do ECA nos territórios.
Aos 35 anos, o Estatuto segue sendo um dos instrumentos mais avançados de proteção da infância no mundo. Mas sua efetividade depende de vontade política, investimentos sustentáveis, e da mobilização permanente da sociedade civil. Proteger as crianças não é apenas uma obrigação legal; é uma escolha ética, que define o tipo de país que queremos construir. O futuro do Brasil começa na infância, e o ECA continua sendo uma bússola essencial para que esse futuro seja justo, digno e sem violência.