Sebastião Pereira do Nascimento*
Há mais de quatro décadas, a globalização neoliberal começou a remodelar a ordem mundial com o surgimento de grupos de extrema direita em vários países. Toda essa circunstância vem contribuindo para o enfraquecimento da democracia global, que vem sendo abalada por sucessivas crises sociais e econômicas, afastando a maioria da população dos benefícios das políticas públicas, priorizando, sobretudo, as classes sociais de alta renda, onde os recursos públicos, em grande parte, são usurpados pelo mercado e transferidos para uma elite capitalista, que se apropria dos ganhos e privilégios de forma impiedosa.
Ao mesmo tempo que esse novo modelo neoliberal toma fôlego, muitas iniciativas econômicas por parte dos pequenos são rigorosamente controladas, o que contribui para uma acentuada desigualdade social, onde os governos passam a abolir a normalidade das coisas e adotam políticas exigidas pelo mercado financeiro, fazendo com que a soberania do povo seja substituída pela soberania das finanças globais impulsionadas pelas grandes corporações. Cabe ainda aos governos neoliberais dizimar os direitos trabalhistas, fazer altas isenções fiscais e outros benefícios ao grande capital, sacrificar a produção local em detrimento dos produtos das multinacionais, incentivar o mercado de commodities e privatizar ativos do setor público a preços irrisórios, perdendo credibilidade e a capacidade de servir o país.
Portanto, esse “novo” modelo, fruto de um sistema neofascista, tornou-se necessário para a sustentação de uma política estapafúrdia, estimulando a subversão da ordem institucional, aumentando ainda mais os desarranjos políticos e sociais, tendo aqui no Brasil os maiores exemplos, o período da ditadura militar que propagava uma ordem econômica neoliberal conflitante entre o crescimento e o desenvolvimento, onde o crescimento não conduzia automaticamente à igualdade nem à justiça social, pois não leva em consideração nenhum outro aspecto da qualidade de vida, sempre elevando o ganho financeiro da elite capitalista e o empobrecimento da maior parte da população.
Tão emblemático e temerário quanto à ditadura militar no Brasil, renasce no final da segunda década dos anos 2000, um movimento capaz de trilhar por vias antidemocráticas, promovido pela ultradireita conservadora que, em 2018, escolheu para candidato à presidência da república, Jair Bolsonaro, um entusiasta da desordem e da indisciplina, eleito por uma gama de elementos que tinham em comum a falência intelectual. Pois acreditavam (e ainda acreditam) nas mais esdrúxulas palavras editadas pelo então candidato sempre repleto de ressentimentos tóxicos, que navegam pela retórica da estupidez e da ignorância e impulsionam os indivíduos acéfalos a repetirem as mesmas ordens ameaçadoras: acenos à ditadura, o fascínio bélico, a falsabandeira anticorrupção e a dissimulada defesa da família, da pátria e dos bons costumes.
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Ademais, com a política extremista de Jair Bolsonaro, abriram-se janelas para uma massa amorfa que antes se sentia “enjaulada” e, então, se sentiu “autorizada” a externar os mais tóxicos sentimentos imorais e aviltantes. Isso, direcionado às manifestações de ódio e aversão contra tudo que pode ser considerado de avanços sociais e ambientais no Brasil. Na mesma linha, o governo de turno fazia alusão à ditadura militar, defendia a população armada, orquestrava repulsas à população brasileira que não pactuava de suas ideias e, ainda mais grave, hostilizava qualquer movimento político social de caráter libertário ou que tivesse cunho socialista ou comunista, taxando-o odiosamente de esquerdista. Atitudes desprezíveis que remontam à época da ditadura no Brasil.
Isso criou uma atmosfera generalizada de medo na sociedade, subvertendo as ordens das coisas, intimidando o judiciário, revogando regras e normas constitucionais, fazendo acusações falsas e ameaçando oponentes, insurgindo contra as instituições do Estado, apoiando grupos de milícias e bandidos, manipulando a mídia e disseminando em grande escala falsas notícias nas redes sociais. Um governo inoportuno que esfacelou a cultura, a ciência e tecnologia, a educação e as universidades públicas, além dos setores de desenvolvimento social e do meio ambiente. Estimulou o garimpo ilegal, a grilagem de terras, o desmatamento e as queimadas, vindo a contribuir para o aquecimento global. Um governo fascista, armado de uma anocracia — fusão de democracia com elevados apelos autocráticos — amalgamada de mitomanias: mentiras (perturbadoras e depreciadoras), que davam fôlego à corrupção e promoviam uma verdadeira devastação na administração pública. Isto posto, era comum ver medidas governamentais sendo tomadas em desconformidade com a realidade brasileira e embasadas em fatos que não correspondiam a nenhuma verdade.
Além da aversão à cultura, à ciência e à tecnologia, Jair Bolsonaro, para disfarçarsua incompetência, agia sempre com ameaças e mentiras através de discursos ofensivos e tentativas de controlar as instituições governamentais, tanto civis como militares, provocando tormentas por todo o país. Portanto, a vontade de Jair Bolsonaro de governar o Brasil sob a tutela de um Estado ilegal era grande — essa possibilidade foi conspirada na surdina, entre seus pares mais próximos, como ficou esclarecido mais tarde pelas investigações da PF —, tendo em conta que sempre vociferava narrativas em favor da ditadura. Além disso, a sua política de governo era fruto de uma corrente ideológica que sintetiza tanto a subversão da ordem institucional quanto uma política beligerante com acintes à constituição e aos poderes judiciário e legislativo, incitação à prática delituosa pelos agentes de segurança pública, tentativa de cooptar as Forças Armadas para dentro do seu governo, além da ideia violenta de armar a população civil. Algo que vem contribuindo para a escalada de feminicídios e da violência urbana e rural, além de fortalecer as milícias, o crime organizado e o comércio ilegal de armas.
Com o mesmo propósito, Bolsonaro governava admitindo pessoas ideologicamente comprometidas com o autoritarismo à frente de setores estratégicos como forma de se brindar e afiançar seus desejos ultrajantes, inclusive admitindo militares pelegos no governo. Algo típico de qualquer ditadura, como disse o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, “quando você multiplica militares no governo, eles começam a se identificar como governo e começam a se identificar com vantagens e com privilégios. O resultado é um desastre.”
Portanto, Jair Bolsonaro (mitômano insaciável) e seus adeptos também praticavam a corrupção, robusteciam o pensar ardil e praticavam (e ainda praticam) abomináveis atitudes imorais, racistas, sexistas, homofóbicas, misóginas, preconceituosas, dentre outras anomalias, bem como aversão às ordens religiosas que defendem Estado laico, em nome de uma igreja que tenta disseminar uma agenda limitada, preconceituosa e ultraconservadora. Essas pessoas acéfalas, afetadas por fortes distúrbios mentais, mostram-se incapazes de considerar as próprias falhas e odeiam fazer as coisas certas. E, assim como seu patrono, se utilizam da leviandade e pregam repetidamente a trilogia: Deus, pátria e família. No entanto, agem contra os princípios religiosos quando trocam o bem pelo mal; quando renegam a pátria, destruindo as instituições e o patrimônio público ao mesmo tempo em que desconstroem os avanços sociais e econômicos do país; ou quando violentam e depreciam a capacidade da mulher e desacatam os valores e a diversidade da família brasileira, inclusive das famílias homoafetivas.
Na pandemia, Jair Bolsonaro, de forma ardilosa e suicida, insuflava seus sectários a cometerem as piores atitudes em favor da covid-19 quando, sem nenhum escrúpulo, pregavam mentiras que acabavam por disseminar ainda mais o coronavírus. Os negacionistas negavam a gravidade da doença, contrapondo as vacinas e as recomendações sanitárias preconizadas pela ciência. Outra coisa correlata à tragédia pandêmica é que os negacionistas, esvaziados de sentimentos humanos, não se importavam com quem morria ou com a dor profunda de quem perdia um semelhante, ainda que fosse seu próximo.
O fato é que essas pessoas perderam a capacidade de reagir às imperfeições humanas, deixando aflorar o seu lado demônio, colocando em prática seus mais ardilosos sentimentos. É exatamente assim! Basta um estímulo maior para que aqueles — os mais fracos — percam a capacidade de lucidez e passem a praticar coisas amorfas, deixando fluir as piores coisas. No caso dos seguidores da extrema direita, como a maioria dos adeptos do bolsonarismo, em profunda turbulência mental, passaram de sujeitos indecorosos a sujeitos indecorosos e violentos que agiam sistematicamente em favor da imoralidade, da miséria, da violência, da impunidade…
Assim, as pessoas sem a resistência moral sempre se afrontam quando têm que cumprir com aquilo que é convencionalmente normatizado social, cultural ou tecnicamente. À vista disso, deixam de fazer as coisas certas. Logo, o sujeito que deixa de praticar corretamente uma norma, regra ou qualquer ordem que venha trazer benefícios à coletividade, é um sujeito de caráter duvidoso, onde mesmo diante da falta de retidão ele se acha no direito de esculachar o outro ou tentar impedir que o outro cumpra a obrigação moral estabelecida — por exemplo, a atitude de subestimar ou negar os graves problemas causados pela pandemia coloca em xeque o caráter do negacionista em relação a qualquer outra coisa, pois, ele não hesita também em desprezar quaisquer outros princípios morais que orientam a sociedade. A contar disso, as pessoas que agem assim não podem ser confiáveis, pois a todo momento estão se reafirmando naquilo que é de mais imoral e repulsivo.
Pessoas como essas sempre apresentam diversos traços em comum, como: deficiência intelectual; dificuldade de aceitar normas e regras; dificuldade de aceitar a derrota; atitudes hostis quando contrariadas ou quando não são aplaudidas e, ademais, são afetadas pelo transtorno mitomaníaco — mentiroso compulsivo —, com grande capacidade de enganar as pessoas, fingindo ser correto e ordeiro, mas é antiético, imoral e sempre age de forma desonesta. O mitômano (daí o “mito” de Bolsonaro) torna-se incapaz de julgar racionalmente uma situação, a qual se perde, literalmente, nas próprias mentiras e acaba ficando sem muita noção do que é real e do que foi inventado por si mesmo.
Juntos ou separados, esses traços de personalidade são como passaportes para aqueles que insistem em ações insidiosas, como, por exemplo, conspirar um golpe de estado ou mesmo subverter a ordem democrática, como ocorreu com a presidenta Dilma Rousseff (em 2017) ou, por exemplo, a tentativa de golpe tramada pela ultradireita e liderada por Jair Bolsonaro, o qual, sem a capacidade política e moral para ser reeleito, em 2022, passou a agir cinicamente contra as eleições democráticas e o estado democrático de direito — num claro desrespeito à constituição e à vontade do povo.
Neste contexto, as pérfidas provocações por parte de Bolsonaro e seus lacaios (hoje chamados de “malucos” pelo próprio ex-presidente), com o intuito de desestabilizar o país, levaram o Brasil a testar o seu sistema democrático, quando a sociedade brasileira e, sobretudo, o poder judiciário, mostram que a democracia no país, apesar dos arranhões, está consolidada. A tentativa de abolir a democracia se deu por diversas ameaças sob a égide do então presidente, que instigavaseus lacaios à subversão da ordem política e social, sendo inclusive correspondido pela ala mais radical das forças armadas. A intenção do governo belicoso era de que as Forças Armadas saíssem dos quartéis e fizessem coisas além da legalidade (e fizeram), quando uma parte insidiosa dos militares (ativos e inativos), no afã de continuar no poder,conspirou contra o país e seu povo.
No contexto atual, remanescentes desse trágico governo — em meio ao cinismo e à frustração pela derrota no sufrágio de 2022 —, ainda ruminam dejetos infectos do governo passado, com risco potencial de serem obrigados a prestar contas por suas mentiras e transgressões, a exemplo de seus pares que, hoje, sem os arroubos de antes e sem os amparos do poder, se humilham e pedem clemência no banco dos réus. Todavia, antes a força da justiça, logo serão presos. E, muitos dos quais se achavam intocáveis, hoje pateticamente se acovardam e fogem do país, aclarando as evidências de que têm algo condenável. Felizmente, em conformidade com os princípios da justiça, um a um dos “malucos” (como bem disse Bolsonaro, e ele próprio) estão tendo que prestar contas com a justiça pelos diversos crimes praticados em desfavor do estado brasileiro.
*Filósofo, escritor e consultor ambiental. Autor de vários artigos científicos e autor dos livros: “Sonhador do Absoluto” e “Recados aos Humanos”. Membro editorial da revista “Biologia Geral e Experimental”.
“As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do Jornal”