Cultura

Mixira: tradição exótica e saudável

A comida conhecida em RR há mais de um século dispensa os conservantes químicos e é uma delícia

Naquela época não havia freezer. Geladeira era para poucos e de uso limitado. No interior então, nem se fala. Guardar comida dependia da criatividade e da experiência dos mais antigos. 

Era o tempo da carne seca. O tempo do moquém. Era também, o tempo da mixira. Aliás, você sabe o que é? Mixira é palavra indígena originada no tronco linguístico tupi. Significa conserva. Mixira é carne frita na banha do próprio animal. De uso comum na Amazônia, normalmente é feita com tambaqui, tartaruga, peixe-boi ou porco.

Em Roraima, quando se falava em mixira – sim, porque atualmente muita gente nem sabe o que é – sabia-se que era de carne de porco. Porque as outras carnes não eram abundantes por aqui.

E por que falar em mixira? Porque essa tradicional, saudável e exótica iguaria regional, tem uma similar no Centro-Oeste brasileiro, a “carne de lata”. Após a popularização do freezer e da geladeira, nas fazendas quase já não se faz a conserva.

Nos últimos 40 anos, o roraimense se afastou do hábito de comer mixira e muitos nem a conhecem. O estado recebe gente de outras regiões que carregam seus traços culturais. E, de repente, principalmente os jovens roraimenses, passaram a degustar a novidade chamada “carne de lata”, a nossa mixira.

Sem perder o contato com a cultura tradicional, por aqui há gente que ainda faz a saudável mixira. A ideia também passa pela vontade de levar aos mais novos a forma correta de produzir comida rápida, sem conservantes. Como a comida precisa apenas esquentar, fica fácil. Como nos velhos tempos!

Mais de um século de história

É provável que a famosa “mixira” na Região Norte, ou a “carne de lata” na Região Centro-Oeste, seja de origem indígena. Uma pela etimologia da palavra. Outra, porque os colonizadores daqui usavam o termo aprendido na convivência com pescadores amazonenses e o adotaram como conserva da carne de porco. 

O ex-pecuarista, Afonso Cândido de Lima, 78 anos, é tetraneto de José Amâncio de Lima, que chegou a Roraima em 1890. A história da família Lima registra que, o já falecido pai de Afonso, o pecuarista Cícero Gelb de Lima, nasceu em 1912, na região Pirara. E eles transmitiram aos descendentes a palavra mixira.

Pirara era uma porção de terra pertencente ao Brasil que foi administrativamente tomada pela Inglaterra, para compor a então Colônia Inglesa da Guyana, hoje a República Cooperativista da Guyana.

Desde tenra idade e fora os períodos de escola, Afonso era vaqueiro da família. Depois, implantou suas próprias fazendas (Barra Limpa e Nambi), no Município de Normandia, das quais foi despejado para dar lugar à Terra Indígena Raposa/Serra do Sol.

Como homem do trabalho, Afonso conta que a mixira era uma forma não só de armazenar, mas, também, de diminuir o trabalho da mulher. A comida estava pronta. Bastava esquentar! “Também tínhamos a alternativa de levá-la para o campo de dormida. Ou quando descíamos para embarcar o gado na Carnaúba”, lembrou.

A senhora Élzia das Graças Pereira de Lima, 70 anos, também tem origem em família tradicional de Roraima. Ela é bisneta de João Capistrano da Silva Mota, o lendário Coronel Mota, chegou a Roraima no século XIX, na década de 1860, usava o nome mixira e o transmitiu aos descendentes.

Durante 47 anos ininterruptos, Dona Graça viveu entre a fazenda dos pais e as do marido. Ela diz que a mixira é feita para conservar a carne do porco de forma prática, porque a comida fica pronta. Para torná-la mais saborosa, basta fazer um molho, ou farofa.

“Na época usávamos muita nata de leite para fazer o molho. As receitas ficavam ótimas. Até hoje faço em pequenas quantidades, apenas para matar a saudade e não deixar morrer nossa tradição”, declarou Graça Lima. (C.P)

Como se faz 

Pois bem! Para fazer a mixira, tem-se que ter abatido um porco para usá-lo inteiro ou em parte. As cozinheiras das fazendas (quase sempre as donas da casa) usavam um tacho para fritar o toucinho e obter a banha.

Naquele mesmo tacho, iam colocando pedaços de carne até que estivessem fritos, bem fritos. Por perto, estava o depósito, devidamente limpo. Ali ficaria guardada a carne complemente imersa em banha.

Aquela porção de mixira ficava ali…no jirau! Só seria aberta na falta de carne fresca ou para ser o prato principal da casa, até que “um bicho” fosse abatido. Coisa fina! Tradição pura, hoje praticamente engolida pelos tempos modernos. (C.P)

Compartilhe via WhatsApp.
Compartilhe via Facebook.
Compartilhe via Threads.
Compartilhe via Telegram.
Compartilhe via Linkedin.