Mais uma semana na série Álbum Essencial, e mergulhamos desta vez na estreia do trio californiano Foster the People, liderado por Mark Foster, um álbum que chegou sorrateiro em 2011, com pinta de indie pop ensolarado, mas que, à medida que se ouve, revela suas sombras. Torches é um debut e também um epitáfio; um disco que fala da desorientação de uma geração nascida entre a esperança milenar e o vazio das redes sociais, tudo embalado com ganchos melódicos e beats infecciosos. Como um sorriso forçado diante da câmera: belo e desconfortável.
Foster the People emergiu num período pós-Myspace, no rastro de um boom de bandas indie que tentavam traduzir em som a psicose urbana do século XXI, assim como MGMT, Passion Pit, Empire of the Sun. Todos surfando a linha tênue entre a euforia sintética e a melancolia estética.
Quando Pumped Up Kicks explodiu como hit viral, foi fácil confundi-los com mais um projeto solar e inofensivo. Mas essa canção, sobre um garoto solitário planejando um tiroteio, revelava a tese oculta de Torches: há algo de podre sob a superfície polida. O álbum é, em essência, um delírio pop em uma sociedade prestes a implodir.
O disco foi lançado em maio de 2011, nos Estados Unidos de um Obama ainda popular, mas em um mundo pós-crise de 2008, já empapado de desconfiança nas instituições. No Brasil, a euforia de classe média era alimentada por crédito fácil e expansão de consumo.
A promessa da felicidade estava em toda parte, inclusive no iPod. É nesse cenário que Torches encontra eco: um álbum sobre deslocamento, mascarado de trilha sonora para festas com luz estroboscópica. O título, “tochas”, parece acidentalmente profético: o fogo que guia também pode consumir.
Produção e tracklist
A produção é de uma sofisticação quase cirúrgica. Greg Kurstin (conhecido por trabalhos com Adele e Sia), Paul Epworth (responsável por parte de 21 e Lungs) e Rich Costey (Muse, Interpol) ajudam Foster a construir um som cheio, cinético, texturizado com precisão. Cada faixa pulsa como se tivesse sido feita para explodir em fones de ouvido de adolescentes inquietos e playlists de corrida matinal. Mas quanto mais se ouve, mais se percebe: a alegria é só o invólucro. A melancolia habita os graves.
“Helena Beat” abre o disco como um chamado à guerra contra a apatia. A batida nervosa e os falsetes sugerem celebração, mas o refrão denuncia o colapso: “Yeah, yeah, and it’s okay / I tie my hands up to a chair so I don’t fall that way” (Amarra-se para não cair. Esse é o pacto do disco com seu ouvinte)
Em “Houdini”, o artista performa sua própria fuga: a liberdade como ilusão, a identidade como espetáculo. Já “Call It What You Want” ironiza a rotulação do artista pop,“Yeah, we’re locked up in ideas / We like to label everything”. Se o sistema é uma vitrine, o artista se exibe como produto, enquanto grita por autenticidade.
Musicalmente, Torches é um playground de sintetizadores cintilantes, percussões digitais, baixos encorpados e harmonias vocais trabalhadas com esmero. Há algo de MGMT, sim, mas também ecos de David Byrne e até de Prince, a mania de fazer o corpo dançar enquanto a mente implode.
“Waste” se destaca como um suspiro mais vulnerável, quase uma canção de ninar para adultos desiludidos. Já “Miss You” é um momento de psicodelia pop perfeitamente dosada, onde o vazio emocional se esconde por trás de delay e groove.
O disco, com suas dez faixas, não busca resolver nada. Ele apenas desnuda o caos, mas com brilho. É como se Foster pegasse as ansiedades urbanas de um millennial sem fé e as embalasse em papel metálico, com laço holográfico. O resultado é irresistível, mas desconcertante.
Recepção
Na época de seu lançamento, Torches foi recebido com certo ceticismo por parte da crítica mais purista, que via na sonoridade açucarada algo descartável. Mas os anos foram gentis com o álbum. Hoje, ele é lembrado como um retrato sincero e esteticamente refinado de seu tempo, o início da década de 2010, quando o indie se tornou pop, o pop se tornou pós-moderno, e todos começaram a duvidar se estavam mesmo felizes. A influência do disco se espalhou, de forma silenciosa, para inúmeros artistas que hoje equilibram ironia lírica com batidas dançantes, de Tame Impala a Glass Animals.
Seria Torches possível em outro contexto, ou ele é um filho legítimo de sua época, da juventude saturada de estímulos e da promessa sempre adiada de sentido?
Torches é para quem…
Esse álbum é para quem dança com um pé na terapia e outro na pista. Para quem desconfia do otimismo, mas ainda o persegue como uma febre. É para ouvintes que veem beleza nas rachaduras, e que preferem seus refrões com uma pitada de desespero. Se você gosta de Phoenix, LCD Soundsystem ou se pergunta como seria um disco do Andy Warhol se ele tivesse uma MPC nas mãos, esse é seu lugar.
No fim, Torches não responde nada, só dá batidas às perguntas. Mark Foster não quer curar ninguém. Quer apenas que nos olhemos no espelho, enquanto o som explode, e percebamos: estamos todos sorrindo com os olhos opacos.