SEXTA CINÉFILA

Climax: quando o corpo vira palco e a câmera, um pesadelo

Projeto de Gaspar Noé mostra retrato hipnótico e brutal da humanidade em delírio e colapso

Foto: Reorodução/Internet
Foto: Reorodução/Internet

Em mais uma edição da Sexta Cinéfila, mergulhamos em obras que desafiam convenções. Desta vez, o alvo é “Climax” (2018), de Gaspar Noé, um filme que sintetiza a obsessão do diretor pela libertação sensorial e pela decomposição da sanidade.

Lançado num contexto de crescente ansiedade global (ascensão da extrema-direita na Europa, crise migratória e tensões identitárias), Climax é um espelho distorcido de uma era à beira do colapso. Noé, conhecido por provocar tabus em Irreversible e Enter the Void, aqui atinge um equilíbrio brutal: mescla a estética agressiva com uma precisão coreográfica que o coloca entre os expoentes do cinema físico contemporâneo.

A obra representa uma dualidade fascinante: é simultaneamente uma celebração da dança como êxtase coletivo e um tratado sobre o fracasso da civilização. Filmado em apenas 15 dias, com um elenco majoritariamente de dançarinos não-atores, Climax mostra a evolução de Noé, que está menos dependente de choques gratuitos e mais focado na potência do corpo e do movimento como linguagem primordial.

Foto: Reprodução/Internet

A fotografia de Benoît Debie inunda a tela com vermelhos, azuis neon e verdes ácidos, evocando uma boate pós-apocalíptica. A câmera flutua como um espectro embriagado, com planos-sequência de tirar o fôlego. O primeiro, de 42 minutos, é uma aula de coreografia e caos controlado.

A trilha sonora, uma mixagem de techno (Daft Punk, Aphex Twin), disco (Cerrone) e música árabe, cria um ritmo hipnótico. A sonoplastia distorce vozes e passos, simulando a desorientação do LSD. A edição, com cortes bruscos, rotações de tela e legendas provocativas (“Vida real é um sonho coletivo”), fragmenta a percepção. O filme começa pelo fim, depois retrocede, típico do non-linear noéano. O roteiro, quase inexistente, foi improvisado a partir de tópicos como racismo, homofobia e inveja, revelando tensões latentes.

Os 20 dançarinos, liderados por Sofia Boutella (ex-backup de Madonna), entregam performances cruas. A cena inicial, uma coreografia frenética ao som de “School Boy / Function” (DJ Sprinkles), é um êxtase de corpos sincronizados. Já a sequência do “sangue no chão”, onde a câmera gira 90 graus enquanto o pânico se instala, é um marco da cinematografia psicodélica. Curiosamente, Noé intoxicou a equipe com vinho durante as filmagens para capturar a desinibição real. O orçamento? Míseros €2.6 milhões.

O filme divide-se em dois atos: o primeiro, uma festa utópica; o segundo, um pesadelo tribal. Quando alguém adiciona LSD ao sangria, a narrativa desmorona junto com as mentes dos personagens. Não há heróis, apenas vítimas de seus próprios demônios. A dança, antes ritual de liberdade, vira guerra de instintos. O corpo, templo da arte, torna-se campo de batalha. O grupo multicultural (franceses, argelinos, russos) descamba em xenofobia e violência, questionando falácias da “harmonia diversa”. O salão de espelhos reflete identidades fragmentadas; as escadas para o porão simbolizam a descida ao inconsciente. A câmera subjetiva faz você sentir o pânico.

Estreado em Cannes, Climax dividiu críticos: “genialidade técnica” vs. “tortura misantropa”. O público saía de sessões nauseado. Com o tempo, porém, tornou-se cult entre cinéfilos e artistas, celebrado como experimento radical. Foi citado por Ari Aster (Midsommar) e Luca Guadagnino (Suspiria) em cenas de dança ritualística, reacendeu debates sobre os limites da representação do sofrimento e virou referência na cultura eletrônica, com VJs usando seus planos-sequência em raves.

Clímax é para quem…

Este filme é para quem busca cinema como experiência sensorial total, não entretenimento passivo. Fãs de Derek Jarman, Lars von Trier ou do movimento French Extremity encontrarão aqui um manifesto. Para quem se interessou, sugiro Enter the Void (Noé), Uncut Gems (Safdie), Suspiria (Guadagnino) e as obras de Maya Deren (Meshes of the Afternoon), pioneira do trance fílmico.

Climax é uma cápsula do tempo do mal-estar do século XXI. Noé não quer que você “goste”, quer que você sobreviva à experiência. Como disse o diretor, “Se a vida é uma festa, por que ignorar que ela pode virar um massacre?” Para o bem ou mal, este filme redefine o que o cinema pode provocar. E, como toda boa obra-prima, não sai de você, mesmo quando você implora.

“O filme mais honesto sobre drogas já feito: não mostra ‘viagem bonita’, mas o pavor de perder-se para sempre.” — RogerEbert.com

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