Saúde e Bem-estar

‘Não tinha mais ninguém por mim aí fora’, relata viciada em álcool

Entre 2010 e 2020, houve aumento de 3,91% de mulheres consumidoras nocivas de álcool; Projeto em Roraima, atende as dependentes e as apoia psicossocialmente

“No momento, eu voltei a vim aqui porque eu não tinha onde ficar. Não tinha mais ninguém por mim aí fora. Tinha caído na recaída nesse dia e aí eu pedi abrigo aqui no projeto Impacto que eu morava antigamente”, foi o que disse Miriam (nome fictício), uma dependente do álcool e com bulimia, de 41 anos.

Miriam é a mais velha na comunidade terapêutica do projeto Impacto, que atende mulheres viciadas em álcool, em Boa Vista, pertencente ao Centro de Atenção Psicossocial ao Álcool e outras Drogas (Caps Ad III). Ela iniciou no alcoolismo há cerca de 6 anos, desse tempo para cá, recebe tratamento do projeto e do grupo de apoio Alcoólicos Anônimos (AA). 

Sua recaída foi há quatro meses, quando bebeu perfume e álcool em gel depois de uma crise de abstinência por não estar tomando o remédio. Miriam conta que tem família, mas retornou ao projeto para provar para ela que é capaz de sair do vício do álcool. 

“Para quem acredita em mim, eu vou sair disso, eu não vou mais recair, não mesmo, não vou não nunca mais. Eu prometi para Deus, eu fiz um jejum com ele por isso que eu tenho diminuído. Até estou ficando muito magra porque eu fiz uma cirurgia bariátrica, tem quatro anos, e aí eu tenho problema com distúrbio alimentar, eu estou com bulimia, mas fora isso eu estou bem aqui”, contou mais Miriam. 

A realidade de Miriam é a de muitas mulheres no estado. Segundo a psicóloga e coordenadora Clarisse Custódio, psicóloga do Caps AD e responsável pelo projeto de acolhimento às mulheres, tem sido cada vez mais comum ver mulheres viciadas em álcool devido problemas sociais e psicológicos. 

O vício
Até 2019, segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad/FioCruz), grande parte dos dados considerados mais alarmantes com relação aos padrões de uso de drogas no Brasil não estão relacionados às substâncias ilícitas, e sim ao álcool. Mais da metade da população brasileira de 12 a 65 anos declarou ter consumido bebida alcoólica alguma vez na vida.

Em pesquisa divulgada nesta segunda (20), segundo o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), a nível nacional, mulheres também lideraram o consumo nocivo de álcool. Entre 2010 e 2020, o aumento entre as brasileiras foi de 4,25%. O consumo abusivo de bebidas alcoólicas entre mulheres que vivem em Boa Vista, aumentou 3,91% em dez anos. Entre os homens, no mesmo período, também houve um aumento, porém de 1,17%. 

“Quando a pessoa não consegue ficar sem usar e o corpo entra em abstinência,  o mesmo entra em um estado de ansiedade que sozinho não controla. Precisa fazer uso para sentir que está sob controle, o fato que é um falso controle”, explicou Clarisse.


Clarisse Custódio afirma que é importante entender os percussores do vício. (Foto: Nilzete Franco/FohaBV) 

A especialista explicou que a pessoa foca mais em obter prazer nas drogas do que na própria vida e nos familiares. As interferências psicológicas e sociais são lesões que podem ser irreversíveis, dentre elas estão: transtornos psiquiátricos graves e persistentes, capacidade reduzida de raciocinar, quebra do vínculo com a família, desemprego, problemas com justiça, suicídio, entre outros.

Estratégias de prevenção e socialização
As ações preventivas devem ser planejadas e direcionadas para o desenvolvimento humano, o incentivo à educação, a prática de esportes, a cultura, o lazer e a socialização do conhecimento sobre drogas, com embasamento científico.

Em relatório divulgado pela BVS-APS (Biblioteca Virtual em Saúde), que reúne o Ministério da Saúde e o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, as estratégias de prevenção devem ser divididas em três níveis:

  • prevenção primária: para evitar ou retardar a experimentação de drogas;
  • prevenção secundária: focada em indivíduos que já experimentaram, visa evitar a evolução para dependência;
  • prevenção terciária: feita por profissional da saúde, a fim de tratar a dependência.
  • Em Roraima, o governo estadual disponibiliza o Centro de Atenção Psicossocial ao Álcool e outras Drogas (Caps Ad). Nele há o acolhimento, a avaliação de necessidade psicossocial e a vivência em comunidades terapêuticas. Também, tem uma unidade de acolhimento, que é uma extensão do Caps, onde a pessoa é acompanhada para rede de apoio como emprego e reatar o vínculo familiar.

    “É um ambiente onde oferece acompanhamento através de uma equipe multiprofissional, psiquiatra, psicólogo, terapeuta ocupacional, educador físico. Tem toda uma estrutura e uma organização desse serviço. A princípio ele chega, faz um acolhimento, é agendado aos profissionais fazer acompanhamento, consulta médica. Nesse acolhimento ele já procura identificar se esse sujeito tem necessidade de internação ou ele apenas recebendo apoio medicamentoso e  dos profissionais ali já conseguiria tirar a fissura, que é gerada por causa do excesso do uso das drogas”, explicou a psicóloga do Caps.

    Clarisse disse que também é importante analisar cada caso pois, além do vício, a pessoa pode ter algum problema psicológico anterior à situação. Assim, “a princípio, a grande maioria, dependendo do nível de dependência, ele precisa da ajuda medicamentosa. Para quê? Para reduzir a ansiedade, consiga aderir ao tratamento e, assim, não voltar para o circuito de uso da dependência química”, afirmou. 

    Por fim, o principal objetivo do apoio oferecido às mulheres e aos demais dependentes químicos é que tanto essas pessoas, quanto a família saibam que existem mecanismos de tratamento ao vício. São 14 comunidades terapêuticas em Roraima, 13 para homens e apenas uma para mulheres, conforme Clarisse.

    “Nós já tivemos uma resposta muito positiva porque mulheres são mais vulneráveis e não existia dentro de Boa Vista e do estado uma comunidade que recebesse mulheres. Elas teriam que se deslocar para Manaus. Isso tem um custo alto e a família e ela não tem condição. A maioria das pessoas que estão na condição de rua e não aceitam tratamento é em função delas estarem com vínculo familiar rompido, desempregadas e sem recurso financeiro”, finalizou a especialista, que está há cerca de seis anos acompanhando dependentes químicos e alcoólicos no estado. 

    O consumo de drogas ilícitas no Brasil
    Quanto às drogas ilícitas, Miriam também chegou a experimentar uma substância depois do vício em álcool. No entanto, ela conta que não gostou tanto e não continuou o uso. De acordo com a psicóloga, após o consumo viciante de álcool, muitas mulheres passam a usar os entorpecentes.

    O 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), realizado em 2015 e divulgado somente em 2019, apontou que a substância ilícita mais consumida no Brasil é a maconha. Cerca de 7,7% de todos os brasileiros entre 12 e 65 anos já usaram maconha pelo menos uma vez na vida

    Aproximadamente 1,4 milhão de pessoas entre 12 e 65 anos relataram ter feito uso de crack e similares alguma vez na vida, o que corresponde a 0,9% da população de pesquisa, com um diferencial pronunciado entre homens (1,4%) e mulheres (0,4%). Nos 12 meses anteriores ao levantamento, o uso dessa droga foi reportado por 0,3% da população.

    A heroína e o crack podem viciar nos primeiros usos, sendo as duas drogas mais viciantes atualmente, além de possuírem um imenso potencial destrutivo. As duas possuem efeitos de rápida interação cerebral, podem começar em questão e segundos após o consumo e podem viciar tanto fisicamente quanto psicologicamente desde o primeiro uso.

    Já a cocaína ainda é um problema no Brasil, devido a sua popularização por todas as classes sociais. Perde, em termos de preferência, apenas para seu subproduto: o crack. Ainda existem muitas outras drogas com potenciais assustadores, porém seu consumo é restrito a certas localidades e comunidades, mas que vem crescendo com o passar do tempo, são elas: Anabolizantes, LSD, Purple Drank, MD, êxtase e o Skunk.

    A pesquisa da Fiocruz também apresentou os padrões de consumo. A maior incidência é percebida entre os homens, com 15% que já consumiram drogas ilícitas, enquanto entre as mulheres a incidência é de 5,2%, sendo 16 anos a idade média em que se dá o primeiro consumo para ambos os gêneros de entorpecentes.

    Três substâncias eram as mais presentes na população brasileira. A heroína era utilizada raramente entre as pessoas, em seguida vinha a maconha com uso moderado. Já a mais utilizada pelos dependentes químicos é o crack.

    Procurando um futuro
    No dia da entrevista, Miriam tinha recebido a primeira visita do pai, que não via há muito tempo. Além do pai, ela não tem contato com o filho e demais familiares. Ela tem consciência das escolhas que fez e não quer mais consumir álcool.

    “Então, eu não quero passar essa vergonha, essa humilhação porque eu já estou com 41 anos. Eu tenho que parar, tenho que dar um basta. Não estou mais novinha, com 20 anos, para estar fazendo essas loucuras. Estou bem aqui”, entendeu.