Walber Aguiar*

Um fotógrafo tem o privilégio de estar onde as coisas acontecem

                                                                          Sebastião Salgado

Formigas trafegavam pela calçada naquela manhã. Então ele atravessou a rua com seu passo tímido, sua obstinação de ser, de estar ali, no meio do frege que se instalara na avenida e na alma inquieta. Naquele tempo de aridez e umidade, de desertos e miragens, de alívio e sofrimento. Tudo precisava ser registrado, afinal, a água, numa visão heraclitiana, não tornaria a passar densa e intensamente como antes.

Naquela manhã ele saltou na direção de si mesmo. Posto que era um com a natureza, abraçou a árvore, bebeu água na concha da mão e se viu na cara sofrida daqueles que teimavam em seguir adiante na busca pela vida ou até pela sobrevivência. Havia os mais aptos, sôfregos pelo desejo, pela vontade de apequenar, reduzir aqueles que se dobravam ante a força do poder e o poder da força.

Ele era considerado um apto do bem, por ser capacitado, competente naquilo que fazia. Registrava momentos de agonia e contentamento, de alegria e vaziez de alma. Por isso descobriu-se a cada clic, a cada momento capturado, fossem os mesmos tomados pela ficção ou por bocados substanciais de realidade.

Estava no garimpo de Serra Pelada, nas tribos do Quênia, no tempo chuvoso ou na seca mais perversa e causticante. Também nos rostos cansados de gente perdida ou achada na floresta, dos ianomami aos yscariana, dos guarani aos wai wai. Ali se encontrou. Na cara da mata, nos oásis da esperança, na desertificação dos vales ou no reflorestamento da imensidão que ganhou sentido, vida, dignidade.

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Era um com a terra, a mãe terra;  juntamente com aqueles que fotografava. Da terra, nossa irmã, saqueada e explorada, consumida e destruída, crivada de facadas ao amanhecer, aprisionada por cercas e sugada em suas forças. Por isso se parecia com os hippies, gente mais sensível e radicalmente apaixonada pela natureza que os ditos cristãos, aqueles que, não raramente, veem o elemento natural apenas sob o viés utilitário e extremamente objetivo.

Por essa causa ele se fez humano, demasiadamente humano. Assumiu o papel de luz não somente no flash das fotos, mas, sobretudo, no fato de ver Deus e se perceber na face do outro, aquele sem cara, sem rosto e sem identidade.

Era manhã quando Sebastião Salgado se foi. Do alto dos edifícios e do olhar das perdidas civilizações, uma lágrima. Uma lágrima sentida, embotada de chuva e barro, mar infinito e miragem, deserto enauseante, luz e escuridão. Uma lágrima em homenagem ao mago das lentes e das formigas que trafegam sem porquê…

*Advogado, poeta, historiador, professor de filosofia, Mestre em Letras e membro da Academia Roraimense de Letras.

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