Os acontecimentos aqui relatados não obedecem necessariamente uma ordem, porém são registros de atividades e acontecimentos que vão marcando o cotidiano deste voluntário nesta nova Fronteira.
Comecei este relato na cidade de Boa Vista capital do estado de Roraima já no meio do mês agosto de 2024. Os surpreendentes 800 km que separam a capital do Amazonas de Boa Vista, não é somente o marco 0 da linha do Equador, mas também a diferença na percepção do clima. Enquanto em Manaus já faz praticamente um mês que não chove nenhuma gota d’água e a sensação permanente é de estarmos imersos dentro de uma gigantesca panela de pressão, com temperatura de 25 a 27° e sensação térmica de 35/40º, em Boa Vista chove todo o final de tarde e apesar da maior parte do dia fazer calor e sol escaldante, depois das 16:00hs somos agraciados com uma brisa generosa, quase não precisando do uso do ventilador durante a noite. Mas os moradores daqui afirmam que o pior virá a partir de setembro/outubro fazendo com que também aqui se vivencie o palco dos horrores.
Viemos de carro. Francisco, um dos irmãos com quem partilho a convivência cotidiana na comunidade de Manaus e Jardel Dellabrida, o voluntário gaúcho que atua no município de Cruzeiro do Sul no Acre. Estes dois jovens que me trouxeram, fazem sentir-me um idoso bem acompanhado e até em certos momentos, protegido. Eles prepararam o lanche da viagem, dirigiram com segurança, discutiam e optavam pela melhor rota… enfim, é muito bom sentir-se cuidado e protegido pelos jovens. Eu vim de carona para “desanuviar as ideias” dizia meu pai. Manaus não dá para aplicar a expressão “selva de concreto” que usualmente usamos para nos referirmos às grandes metrópoles brasileiras. Esta metrópole é diferenciada por tratar-se de uma cidade ainda de característica horizontal. Aqui, todos os horrores do urbanismo brasileiro estão presentes, porém o caótico não se manifesta no peso opressor do concreto armado, mas é na quantidade de carros aos milhares que superlotam suas avenidas acrescidos de caminhões gigantescos que transportam produtos da Zona Franca por dentro de determinada áreas urbanas da capital. O recheio do caótico é quando as entram as motos nas entrelinhas destes torvelinhos sem fim. Elas, com seus condutore/as se apresentam de todo canto, de todo lugar. De onde menos se espera uma, pois lá ela se impõe agressiva com piruetas inacreditáveis entre muretas, ônibus, carros e caminhões. Para chegar à periferia onde atuo tenho que “dialogar” com este turbilhão barulhento, fumacento e descontrolado. O transito pesado de automotores não chega a ser um problema para os pedaleiros que são muito poucos. Na sua lentidão o pedaleiro se movimento sempre pela direita com ligeira vantagem em velocidade provocando inveja e irritação aos motoristas amarrados no congestionamento. O problema começa quando entra a moto no circuito. O motoqueiro insolente pula o canteiro central, anda na calçada, contramão e o mais ariscado de todas é o “furar sinaleira”, competição da galera que aposta na verdadeira “roleta russa”. Neste frenesi alucinado se escuta de tudo, se vê o que não gostaria de nunca ter visto ou ouvido. É deste universo que de carona com “os meninos” fui “desanuviar as ideias”.
A complexidade da realidade social manauara impõe-se ao forasteiro a necessidade de contemplar a realidade despossuído de conceitos ou pré conceitos fundamentados na cultura de origem de quem chega. Uma exigência básica é dar ou ter o tempo necessário para uma espécie de submersão nesta complexidade latente, vivenciando vivencias em andamento, aberto para incorporar matrizes estruturantes do cotidiano popular, vasculhando potencialidades e desalinhos, e a partir disso trabalhar de forma coletiva em ações já em andamento. Se impõe a necessidade do desapego, do distanciamento daquilo que em outras querências ofereceu ao missionário o perfil de um educador popular. Esse desapego é complementado quando o corpo é atingido pelo suor intenso que brota pela quantidade de água ingerida, pelas quantidades de vezes que o banheiro é ocupado, pelas bases substantivas da alimentação com sabores e cheiros muitas vezes sem nenhum naco de semelhanças do cotidiano de outrora. Segundo os causos de velhos e jovens das periferias intermináveis de Manaus, a giboia – a cobra, não a planta – não morde, ou melhor, ela morde mas seus dentes não injetam veneno na presa, ela mata por asfixia – bezerros, pessoas, capivaras – e depois engole inteirinha/o levando 4 meses hibernada, deglutindo. Assim estou eu em Boa Vista…distante do barulho da metropolitana Manaus, degluto experiências ensurdecedoras, sabores e cheiros exóticos absolutamente desconhecidos; reações afetuosas de gente, em lugares que pelos padrões estabelecidos, jamais esperaria tal comportamento. Numa dessas…
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– De uma camionete cabine dupla, parada sobre a calçada ao sol do meio dia, sai um desses barrigudos que parecem donos do mundo e me aborda “você é louco”, ele se desloca até a frente da máquina que lhe dá a autoridade de me chamar de louco, e me chama a atenção de forma peremptória de que – “agora que reparei que o senhor é um velho”- o senhor atrapalha o trânsito e corre o risco de comprometer uma pessoa de bem que venha lhe atropelar”. No mesmo tom respondo um “sim senhor” talvez num tom um tanto zombeteiro. Ele se incha como um sapo, põe o dedo no meu nariz e vermelho de raiva ou do sol que literalmente queimava falou: “vai morrer então velho filho da puta”. Até hoje não tenho certeza que pelo tamanho de sua barriga era muito mais velho do que eu.
Naqueles dias literalmente hibernei em Boa Vista, acolhido de forma generosa pelos irmãos daquela comunidade Marista. Depois de quase 5 meses em Manaus, buscando insistentemente por minha adaptação através deste distanciamento físico e emocional, descanso olhando outros universos aliviando a tensão que rechearam estes 120 dias, exatamente o tempo que a jiboia leva para deglutir as experiências engolidas.
Boa Vista é – a cidade oficial – uma cidade excessivamente planejada lembrando muito Brasília no traçado de suas ruas e avenidas. Olhando o mapa da cidade o exagero de seu esquadrinhamento salta aos olhos. A primeira impressão é de um gigantesco pórtico ou talvez, a embocadura de um túnel hiper dimensionado.
Boa Vista é uma cidade feita para um alto fluxo de automóveis. Em suas avenidas eles como que deslizam num ritmo relativamente calmo comparado ao caótico trânsito da capital do Amazonas. As motos como em Manaus exercem uma função de desordenarem o fluxo do transito, pois elas também de repente aparecem de qualquer lugar minando o sistema viário com suas irregularidades latentes, lutando por espaço, com certeza na casa de milhares delas. Também em Boa Vista, elas reinem de forma absoluta e todos os dias que andei de bicicleta, lá estavam suas vítimas estateladas na via, ambulâncias, paramédicos, dezenas de curiosos em volta, agentes de transito e polícia militar ostentando a truculência costumeira. Um dia contarei o nível de truculência desta raça, nada muito diferente do RS porém aqui os estratagemas são diferentes e os pobres sempre são as vítimas…lá e aqui.
Boa Vista apresenta um relevo totalmente plano. Inequivocamente esta capital poderia tornar-se para o Brasil, a capital brasileira das bicicletas. Seus usuários se exibem com elas de todas as formas e tamanhos. Tive uma impressão tão boa da relação delas com a vida da cidade que trouxe comigo a certeza que elas para um boa-vistense exerce o papel como do meu relógio, do meu óculos, da minha escova de dentes. Elas fazem parte do indivíduos, ocasionando um espécie de simbiose entre a máquina e o ser . Ela simplesmente completa as suas vidas. As crianças das periferias vão para a escola com elas e nelas mães e pais levam-nas na garupa. Os meninos de ontem criavam padrões com suas magrelas… os meninos de Boa Vista também criam os seus: suas bicicletas não possuem banco pedalando sentados na garupa delas. Pela manhã e no início da tarde as ruas adjacentes as grandes avenidas ficam povoadas de magrelas de todas as cores e tamanhos. Muitas sem cores, desbotadas… Na sua maioria não possuem cambio pois não se precisa deles. Muitas delas a olhos vistos não possuem nenhum sistema de freios diante da inexistência absoluta das subidas e descidas. As mulheres aqui andam muito nelas por toda parte. De dia vão para o trabalho e com elas vão ao supermercado…em frente deles elas se mostram talvez às dezenas. Notei que ao trazerem ou levarem os filhos para a escola elas andam em grupo de vizinhança me pareceu. Num desses grupos estavam 8 mulheres pedalando e 11 crianças sendo carregadas e todas conversando animadamente entre si. Com estes números deixa claro que havia mais de uma criança por bicicleta.
Bem que os gestores públicos poderiam usar da criatividade e proclamarem que a partir de tal data Boa Vista se tornaria a cidade das bicicletas e um final de semana chamariam todas as bicicletas do norte para passearem pelas ruas da Capital de Roraima. Seria uma peça de marketing perfeita. A prefeitura poderia assumir este modal fantástico como prioritário para o deslocamento das pessoas na cidade, principalmente dos mais pobres moradores de regiões periféricas. As largas avenidas comportam ciclo faixas na maioria delas . Os motoristas de uma forma geral respeitam os/as ciclistas. A bicicleta faz parte da cidade. A “vocação pedaleira” da capital poderia tornar-se um elo agregador de outras tantas possibilidades de mobilidade urbana na perspectiva do desenvolvimento econômico e ambiental e sócio cultural da cidade. A gigantesca periferia – que por lá também há em abundancia, – teria a chance de se deslocar aos espaços de lazer estabelecidos nas zonas nobre da capital que estão sempre muito bem cuidados e sempre vazios, democratizando o acesso aos mesmos. Esta iniciativa poderia dinamizar o comércio de alimentos e vestuários, além de oferecer outros ambientes de convivência no centro da cidade onde as áreas são mantidas em bom estado de conservação. As ruas da periferia apresentam-se poeirentas e esburacadas, porém o ordenamento urbano me pareceu ainda bastante preservado.
Visitei as duas maiores feiras da capital. Uma experiência maravilhosa. Uma verdadeira manifestação da cultura popular da cidade. Depois da convivência com os irmãos, foi talvez a melhor e mais bela experiência que vivenciei. O povo está lá. Verdadeira multidão. Uma mistura idiomática se impõe – venezuelanos, cubanos, haitianos e boa-vistenses – e todos se compreendem muito bem. Na feira se vende até papagaio de baixo da mesa e olhares muitos olhares apetitosos dão sinais que ali é também o point para programar reencontros. Tem tudo mesmo na feira. Passando pelo ervateiro, pelo colorido exuberante das pimentas, o cheiro do açafrão misturados com tantos outros dá o aroma perfeito para não esquecer nunca mais daquele lugar quase mágico, inebriante daqueles olhos, do peles ocres reluzentes pelo suor, misturados de aromas de queijos e de farinhas de todas as cores. Numa dessas achei um grupo de motoboys sendo servidos de café com generosas talhadas de bolo doce…era o candidato bolsonarista que desde março – segundo curiosos do entorno – repete o ritual nas duas feiras existentes na cidade nos finais de semana.
Conheci a Sebastiana e o Sebastião um casal maranhense que falam muito alto confundindo a estridência de suas vozes com as das araras que namoravam num pé de jatobá gigantesca que sombreava a casa deles. Por sua vez me apresentaram Francisca, uma negra solteirona também do maranhão. Francisca vive numa espécie de quilombo já na zona não formal da cidade, onde ainda se cozinha o feijão na trempe. Criou os sobrinhos todos, além de sepultar pai e mãe maranhenses velhinhos que vieram de caminhão, de barco e por último chegaram de ônibus ainda no finalzinho do século passado em Boa Vista escorraçados pelo sempre amaldiçoado latifúndio de lá. Eles entenderam rapidamente o princípio e a importância de uma composteira e cada um montou a sua e a felicidade delas era contagiante, porque lidam com ervas medicinais, flores e plantas de todo o tipo. Conheci melhor o nosso amigo Alex amigo primeiro da comunidade dos irmãos. Um animador popular de primeira grandeza. Visita a todos com alegria e disposição. Quando ele chega o pessoal já vai disponibilizando o café com o direito a liberdade de reclamar se não está quente o suficiente. É um animador comunitário, um mobilizador social que poderia ser melhor integrado no conjunto das ações populares dos irmãos. Um homem de valor para a mobilização popular a partir de coisas simples como tomar café, falando de amenidades coletivas ajudando a tecer a teia que amagando gens unificadores do espírito comunitário, da fraternidade e do bem querer entre irmãos herdeiros de um passado de sofrimentos comuns.
O povo venezuelano em Boa Vista se empilha pelas ruas centrais de Boa Vista, gerando um impacto de revolta e tristeza. O amanhecer nas proximidades da rodoviária identifica-se um evento de uma verdadeira tragédia humanitária…mas desta tragédia falarei numa outra oportunidade…
Num tempo de dor e sofrimento do povo manauara e de seus arredores. Acabou a fumaça deixando as Unidades de Saúde superlotadas de idosos e crianças…
A seca continua inclemente onde os indefesos sempre sofrem mais: os pobres, e a rica diversidade amazônica com sua fauna e flora são as grandes vítimas.
Pedro Figueiredo um voluntário Marista na Amazônia!
Em Manaus – Manáos, povo indígena que habitavam esta região, os quais faziam parte o grupo Aruaque.