Sebastião Pereira do Nascimento*
Numa época distante, o mito grego de Erisícton, que fora supostamente rei de Tessália, vendo o mundo como parte integrante de seu domínio ilimitado, passou a cortar uma árvore sagrada para empregá-la na construção de seu luxuoso castelo. Impetuoso e destrutivo, o rei não tomava qualquer consciência de suas ações, nem tão pouco era capaz de cultivar o bom senso em sua relação com a natureza. No mesmo tempo, Deméter, a deusa das colheitas, diante do grave delito causado por Erisícton, passou a despertar nele, como uma forma de castigo, uma fome insaciável. Para satisfazê-la, o rei passou então a devorar tudo o que encontrava em sua volta. E, depois de destruir o meio ambiente e, mais tarde, de destruir o seu próprio reino, como a sua fome não tinha limites, sem outra alternativa, Erisícton passou a consumir a si próprio.
Essa alegoria, mais do que uma metáfora, coloca em evidência uma pergunta que não quer calar: será o ser humano predestinado a destruir o mundo habitável? A meu ver, não! O humano não foi destinado de antemão a destruir a natureza. Nem os humanos nem qualquer outro ser animal foram instituídos para destruir o seu habitat. Pois, se assim os fizesse, seria destruir a si mesmos. O mais incrível ainda é que os humanos só passaram a destruir o seu próprio ambiente, só após o progressivo despertar da consciência lógica e operacional, a qual está voltada sobretudo como “ferramenta” de sobrevivência. Portanto, a atitude humana de destruir o meio ambiente é uma escolha “racional” de cada um que o destrói. Sendo os seres humanos, em franca confusão mental, os únicos animais do planeta capazes de destruir o meio natural em que vivem para construir, ao seu modo, suas vontades mais avassaladoras.
E sobre a azáfama dos humanos de ganhar mais dinheiro à custa da destruição ambiental, com finalidade apenas de satisfazer seus apetites, ao fazê-lo, torna-se uma insaciável relação de capital, ao revés, que se alimenta de mais-valor e de mais destruição de modo tendencialmente infinito. “[…] E, a partir de certo ponto, a sua dinâmica entra num caminho de destruição que leva, pouco a pouco, a um estado em que ocorre a autodestruição [do ser humano]. Ora, se essa lógica foi capaz no passado de superar a “idiotia rural” da sociedade medieval, o modo de produção baseado no capital está agora deteriorando o futuro da sociedade que ele próprio criou — e que não parece capaz de abandonar o seu contínuo processo de destruição. A idiotia do passado foi, portanto, substituída por uma “esperteza imbecil”. Eleutério F. S. Prado. Professor aposentado do Departamento de Economia da FEA/USP.
Portanto, quando olhamos para trás, percebemos que, a partir da revolução industrial, as ações do homem sobre o meio ambiente têm-se tornado cada vez mais insustentáveis e destrutivas, sobretudo por causa da “esperteza imbecil” da sociedade moderna. A qual, sem nenhuma razão, se ocupou de romper sua conexão com a natureza, travando uma complexa luta, onde, embora o meio ambiente padeça das dores, o único que sai derrotado é o próprio homem. O mesmo que fala de desenvolvimento e sustentabilidade, sem, contudo, primar por ambas as coisas.
Sobre o desenvolvimento, pelo fato de poder ser abordado por diferentes enfoques, é um conceito amplo e complexo. No que se refere ao desenvolvimento sustentável, em linhas gerais, se define como um conjunto de práticas que visam à preservação dos recursos naturais, de modo que satisfaça as necessidades humanas presentes e mantenha os recursos naturais para a geração futura. Todavia, na atualidade, ainda que esse desenvolvimento esteja focado em alguma demanda setorial, nem sempre funciona devido ao dilema refratário que vem reprimindo ao longo do tempo as diversas tentativas de inserir, entre a sociedade moderna, um verdadeiro desenvolvimento sustentável. Por um lado, estão as questões políticas, em que os governantes quase sempre se mantêm de costas para os grandes problemas sociais, priorizando as regras do capitalismo. Outra questão diz respeito às diretrizes das propostas de desenvolvimento que muitas vezes não consideram o comportamento da natureza, indo de encontro às normas ambientais, onde muitos olham como um obstáculo aos seus interesses e até tratam tais normativas como medidas burocráticas, desnecessárias e de alcance reduzido — o que não é verdade.
No caso da sustentabilidade, associada ao desenvolvimento, em linhas gerais, ela é atingida quando há uma relação recíproca entre os meios: social, econômico e ambiental. No contexto emblemático da sustentabilidade, esta palavra virou eufemismo nos discursos de políticos e investidores, principalmente quando se referem a algum empreendimento de natureza puramente econômica. Logo, preocupados em não ofender as vertentes de importância sociais ou ambientais, eles até imaginam os benefícios que podem oferecer à população e à natureza, porém o resultado quase sempre é um campo de ruínas, pelo fato de ser unicamente baseado no pressuposto de commodities, ou seja, um negócio fortemente alinhado ao sistema capitalista. Sustentabilidade é, portanto, pensar e agir em equilíbrio frente às diferentes dimensões, sobretudo ambiental, social e econômica. Um tripé que vai garantir a capacidade de um determinado sistema produtivo se manter por muito tempo sem, contudo, esgotar os recursos naturais e que venha promover a diversidade ambiental, a equidade social e a tão aguçada lucratividade.
Diante desse contexto, posto que o ser humano não seja predestinado a destruir seu próprio habitat, no entanto, ele é induzido pelo efeito primal, viés cognitivo que ativa uma herança ancestral de trazer para si a crença de que os humanos são os mais importantes seres da Terra e a principal referência para o entendimento do mundo. Coisa que não é verdade. Pois, uma vez subtraindo os outros organismos do meio em que vivemos, os seres humanos não têm a garantia de sobre-existir.
Então, cuidar do meio ambiente em seus múltiplos aspectos é a medida certa para que os seres humanos continuem vivendo — e não meramente só existindo —, mas vivendo de maneira plena e interagindo com a natureza. Algo possível de ser alcançado, mas, cada dia mais distante da nossa realidade, haja vista as muitas práticas ofensivas provenientes dos mais diversos setores e atividades humanas, que acabam por destruir elementos importantes da natureza. Por exemplo, aqui no Brasil, desses setores e atividades que causam mais impactos ambientais, estão a agropecuária e a mineração. No caso da agropecuária, as grandes monoculturas (agrícola e bovina) — que sob o ponto de vista econômico são apelidadas de agronegócio. Ambas são principais responsáveis por grande parte dos significativos impactos ambientais.
Pelo Brasil afora, tanto as áreas florestadas quanto os ecossistemas de áreas abertas (por exemplo, o lavrado de Roraima) têm sofrido muitos prejuízos com o aumento galopante das grandes monoculturas, especialmente a partir do final dos anos 1990, seguindo pelos anos 2000 — períodos marcados pelo boom da produção de commodities. Assim, a população brasileira vem acompanhando a progressiva expansão da monocultura intensiva em diversas regiões do país, a qual vem produzindo consideráveis formas de impactos, sobretudo ambientais e sociais, com avanços agressivos sobre as terras indígenas e as áreas de conservação, além de grilagem de terra e conflitos agrários.
Sob o pretexto de trazer o desenvolvimento e sustentabilidade econômica e socioambiental, o setor dominado pelo agronegócio, mesmo com sua “potência econômica”, acaba trazendo menos contribuição do que deveria trazer para o país. E, devido essa visão sui generis que temos desse setor produtivo, a semelhança do “ouro de tolo”, o fator “potência econômica” acaba mascarando o lado sombrio do agronegócio, ou seja, o que a vista nega, a gente sente na alma os infortúnios provocados por um volume agudo de impactos socioambientais, ao mesmo tempo em que o setor se abastece de vários benefícios públicos, a exemplo do arsenal tecnológico, produzido quase totalmente por órgãos estatais: Embrapa, Universidades, etc); linhas de créditos, oferecidas por instituições financeiras (Banco da Amazônia, Banco do Nordeste, Banco do Brasil, Caixa Econômica, BNDES, etc); e diversas formas de subsídios fiscais, concedidos pelos estados produtores e pela União.
Portanto, o excessivo uso de recursos, as práticas que degradam o meio ambiente e a saúde humana, as ações que não promovem a justiça social, a concentração de terra e riqueza em poucas mãos, entre outras coisas, fazem com que o agronegócio não seja uma atividade produtiva sustentável. Por outro lado, a adoção de práticas mais racionais, como a agricultura com menos produtos químicos; a produção de baixo carbono; a integração de lavoura, pecuária e floresta; a renúncia da produção baseada no pressuposto de commodities; a quebra da lógica do mercantilismo, onde agronegocistas polarizam apenas seus interesses monetários, etc., pode ajudar a mitigar esses impactos negativos e, além disso, pode promover uma produção agropecuária mais justa e sustentável.
Todos que bebem da mesma fonte do agronegócio acabam repetindo à exaustão um discurso orientado no intuito de suavizar os graves danos causados pela monocultura de larga escala. Discursos esses, bastantes contraditórios quando passam a falar da geração de riqueza aos país (sabendo que as riquezas provenientes do agronegócio estão concentradas nas mãos de poucos, sobretudo nas mãos dos grandes investidores e das indústrias agroquímicas); produção de alimento (estudos científicos apontam que a maioria dos produtos provenientes do agronegócio são contaminados com agrotóxicos); geração de imposto (ainda que pague alguns tributos, é sabido que o agronegócio tem isenção fiscal do Estado brasileiro, onde, segundo a Receita Federal, as grandes monoculturas e as agroindústrias deixam de pagar bilhões de reais/ano de impostos ao país); geração de emprego (ainda que ofereça uma parcela de emprego, segundo a “lista suja”, divulgada em abril de 2025 pelo Ministério do Trabalho, o agronegócio ainda apresenta a maior parcela de trabalho análogo à escravidão). Ademais, dizer que o agronegócio brasileiro alimenta o mundo ou mesmo o Brasil. É desconsiderar o próprio Ministério da Agricultura, quando diz que quem mais coloca alimento na mesa dos brasileiros é a agricultura familiar.
Outros discursos vazios proferidos pelos agronegocistas tratam de negar que as grandes monoculturas causam impactos negativos ao meio ambiente; fatos que acontecem massivamente em muitas regiões do Brasil. Também costumam argumentar, sobretudo em Roraima, que os povos indígenas querem se integrar ao agronegócio, embora os próprios indígenas digam não! Melhor dizendo, os povos indígenas querem sim o desenvolvimento em suas comunidades, mas não o “desenvolvimento” à custa de ter suas terras devastadas e seus rios envenenados pelo agronegócio e pela mineração. Nesse contexto, em entrevista concedida a este jornal, em 29/04/2025, a indígena Vera Lucy Brandão, agrônoma e agroecologista da comunidade Kauwê, município de Pacaraima, sintetiza muito bem a visão dos povos indígenas, quando se refere à preferência de roça praticada por eles em Roraima: “A verdadeira roça indígena é manter a floresta em pé e usar os recursos que ela nos oferece. Não é derrubar, queimar, maltratar para depois usar. É tudo do jeito que a natureza nos oferece. A gente tem uma grande parceria com ela. Hoje a [nossa] jujuba, por exemplo, chega a outros estados do Brasil e até outros países como Japão e Estados Unidos”. […] “A gente se adaptou a trabalhar com o que a natureza nos dá. Por consequência disso, nossos produtos não possuem qualquer tipo de agroquímico.”
Em conclusão, à medida que os ultrajes humanos aumentam sobre a Terra, seus protetores naturais se manifestam com veemência, assim como já vimos em diversas ocasiões, levando mortes e injúrias a todos os seres, inclusive aos humanos, a exemplo da alegoria supracitada, quando o rei que passou então a devorar toda a natureza em sua volta e, depois de destruí-la, passou a devorar seu próprio reino, e como sua vontade de devorar não tinha limites, sem outra alternativa, passou a consumir a si próprio. Em conclusão, urge compreender a verdadeira vocação natural dos diversos ecossistemas brasileiros (aqui em Roraima, tanto a floresta quanto o lavrado) no sentido de serem explorados de forma sustentável, para que no futuro não precisemos consumir a nós mesmos.
*Consultor ambiental, filósofo e escritor – autor de diversos artigos científicos e livros, dentre eles “Vertebrados Terrestres de Roraima”. Membro do corpo editorial da revista “Biologia Geral e Experimental”.
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