OPINIÃO

Por que um estado com muitos policiais nem sempre é sinônimo de estado seguro?

Prisão foi efetuada pela 1° CIPFron (Foto: Ilustrativa/ Nilzete Franco/FolhaBV)
Prisão foi efetuada pela 1° CIPFron (Foto: Ilustrativa/ Nilzete Franco/FolhaBV)

Francisco Xavier Medeiros de Castro*

Durante muito tempo, o senso comum atribuiu quase que exclusivamente ao policiamento ostensivo os resultados negativos relacionados à segurança pública. Assim, havia a crença de que quanto maior o número de policiais distribuídos nas cidades, menor seria a ocorrência de crimes. Partindo dessa premissa, governantes do Brasil e do mundo viam o aumento do efetivo policial como a única resposta condizente ao enfrentamento  da violência, se deixando levar pela cantilena dos “policiólogos” de plantão que sempre culpabilizaram a ausência ou a truculência policial pela efervescência do crime nos territórios desprovidos de qualquer assistência do “estado”.  

O tempo é suficiente para provar que a antiga assertiva “mais policiais, menos crimes” nunca passou de um grande engodo. A comprovação pode ser dada pela análise das taxas de mortes violentas intencionais (MVI), o indicador preferido dos organismos governamentais e não governamentais (sobretudo aqueles mais progressistas) para se aferir o nível de violência e criminalidade dos Estados e seus municípios. Para calcular essa taxa basta dividir o número de mortes violentas intencionais (homicídios, latrocínios, lesão corporal seguida de morte) pelo número de habitantes e em seguida multiplicar por 100 mil habitantes. O resultado permitirá considerar se, sob a ótica dessa metodologia, o Estado ou município avaliado é ou não é seguro, sem que sejam avaliadas, no entanto, outras importantes condicionantes como fatores econômicos e culturais, aspectos geográficos, geopolíticos e ambientais, além da consideração da estrutura do serviço público oferecido às pessoas.  

Atualmente, a taxa nacional de mortes violentas intencionais é de 23,4 mortes por 100 mil habitantes, sendo que a meta do governo federal (um tanto quanto ousada por sinal), conforme detalhamento do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (2021-2030), é reduzir essa taxa para abaixo de 16 mortes por 100 mil habitantes até 2030.

Percebemos o quanto controversa é a solução instantânea proposta para se combater um problema antigo e crônico como a criminalidade violenta apenas com o aumento de polícia na rua quando comparamos as taxas de mortes violentas intencionais dos Estados com o efetivo proporcional das suas respectivas Polícias Militares (instituições responsáveis pela transmissão de grande parte da chamada “sensação de segurança”, por possuírem a competência constitucional para a preservação da ordem pública). Eis uma breve análise comparativa:

Quadro 1– Comparativo entre quatro unidades da federação

UFPopulaçãoEfetivo PMPM por mil habitantesMVI por 100 mil habitantes
São Paulo44.420.45980.0371,88,4
Santa Catarina7.709.6019.5801,39,1
Amapá733.5083.1094,250,6
Roraima636.3032.4853,930,5
Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023); Raio-X das forças de segurança pública do Brasil (Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2024); IBGE (2022)

Com a maior população do país e dona do maior efetivo dentre as policiais militares brasileiras, o Estado de São Paulo apresenta uma das menores proporções de policiais militares por habitantes do país (apenas 1,8 policiais militares por mil habitantes). Em 10 anos, a PM de São Paulo amargou uma redução de 8,9% em suas fileiras, de acordo com o “Raio-X das Forças de Segurança Pública do Brasil” apresentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública na última semana. Apesar dessa significativa perda, São Paulo se destacou pela irrefutável diminuição de sua taxa de mortes violentas intencionais, e se mantém hoje com o menor índice do país: 8,4 homicídios por 100 mil habitantes.

Tão surpreendente quanto o exemplo de São Paulo, é o Estado de Santa Catarina que também apresenta uma taxa de mortes violentas intencionais bem abaixo da média brasileira: apenas 9,1 homicídios por 100 mil habitantes, não obstante seus ínfimos 1,3 policiais militares por mil habitantes (a menor proporção do país!) e sua considerável população de mais de 7 milhões de pessoas.

Para consolidar uma análise comparativa, escolhemos dois estados da Região Norte que, sob os mesmos critérios de aferição, apresentam condições mais favoráveis em relação à população e à proporção de policiais militares por  habitantes.

Com uma modesta população de 733.508 habitantes, o Estado do Amapá se notabiliza pela excelente proporção de 4,2 policiais militares por mil habitantes. Uma proporção bem mais confortável que a de São Paulo e a de Santa Catarina. Porém, mesmo de posse dessa vantagem estratégica, é nesse Estado nortista que reside a maior taxa de mortes violentas intencionais do país: 50,6 mortes por 100 mil habitantes.

O Estado de Roraima apresenta a segunda maior proporção de policiais militares por habitantes: são 3.9 policiais militares para cada mil habitantes, ficando atrás apenas do Amapá nesse quesito. Dentre as Polícias Militares brasileiras, a de Roraima foi a que registrou o maior crescimento no efetivo em 10 anos. A corporação praticamente dobrou seu contingente, aumentando-o em 48%, quando o governo do Estado convocou, em 2021, aproximadamente, mil novos soldados oriundos do concurso público realizado em 2018. A justificativa para a convocação de uma quantidade de novos policiais militares bem superior ao previsto (a previsão inicial era para a convocação de apenas 200 policiais) levou em conta fatores econômicos, sociais e criminológicos que atingiam em cheio o estado naquele momento: aumento populacional ocasionado pela imigração venezuelana, fortalecimento do crime organizado, crescimento urbano desordenado, aumento dos índices de crimes contra o patrimônio, crescimento das mortes violentas intencionais, etc. Apesar do aumento do número de policiais militares ter permitido a capilarização das ações da PM na capital e no interior do estado com a criação de novos destacamentos nos municípios e vilas e de novas unidades operacionais especializadas, e mesmo diante do fortalecimento de ações conjuntas entre os órgãos de segurança (a exemplo da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado – FICCO, junto à Polícia Federal, e da Operação Hórus, em parceria com o Ministério da Justiça e da Segurança Pública) que permitiu uma pontual redução na taxa de mortes violentas intencionais em certos períodos, Roraima ainda permanece com uma embaraçosa taxa de 30,5 mortes violentas por 100 mil habitantes (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2023). Um resultado inversamente proporcional ao elevado contingente policial militar do Estado.

Feito essa analogia, percebe-se de forma objetiva o paradoxo que desmistifica a crença da proliferação do crime e da violência vinculada a uma menor presença ostensiva da polícia.

E por que é possível essa disparidade? O que permite que estados com uma alta população e com um número, proporcionalmente, muito inferior de policiais consigam manter, cada vez mais baixos, seus índices de mortes violentas intencionais? Do mesmo modo, o que impede que estados com um efetivo mais generoso de policiais militares e com populações bem mais modestas consigam reduzir suas taxas de mortes violentas?

O que se observou em relação aos estados de São Paulo e de Santa Catarina foi a viabilização de estratégias que contemplaram desde a distribuição qualificada do efetivo, ao investimento na capacitação de seus oficiais e praças, além do suporte tecnológico e operacional dado ao policiamento. Inicialmente, essas estratégias podem ter sido postas em prática como uma compensação pelo insuficiente efetivo policial militar. Mas com o passar do tempo, sem que se precisasse lançar mão de um vultoso contingente ostensivo, percebeu-se que os resultados atingiam os objetivos para uma desejada preservação da ordem pública: minimização da criminalidade, aumento da sensação de segurança, padronização e gestão do planejamento operacional e garantia efetiva da ordem pública.

Especificamente sobre essas estratégias, é válido destacar como esses excelentes resultados puderam ser operacionalizados pelos dois estados tomados como exemplo:

1) Distribuição qualificada do efetivo policial militar: viabilizada pela adoção de metodologias de avaliação do cenário criminal e validação dos tipos e processos de policiamento possíveis de serem lançados nos diferentes terrenos. Para isso, ferramentas tradicionais para a análise e melhoria contínua de processos são utilizadas no planejamento e execução do policiamento, como os conhecidos ciclo PDCA, análise SWOT e o plano de trabalho baseado na metodologia “5W2H”. Aliada a essas ferramentas mostrou-se bastante exequível a utilização de sistemas como o Business Intelligence (BI) pelos departamentos responsáveis pelo planejamento operacional daquelas polícias, tornando possível a captação de informações estratégicas capazes de auxiliar a tomada de decisão dos gestores do policiamento.

2) Qualificação do policial militar: concretizada a partir do planejamento anual para cursos e capacitações que têm como público-alvo todo o efetivo policial militar. Nesse planejamento, há a inserção nos currículos permanentes de temas imprescindíveis à qualidade laboral tanto de oficiais como de praças das corporações, como: inovação, gestão e qualidade total, inteligência emocional e domínio de tecnologias de segurança. Além disso, reforçam-se as capacitações continuadas referentes às qualificações básicas como armamento e tiro policial, utilização de instrumentos de menor potencial ofensivo, legislação aplicada à atividade policial, polícia comunitária e direitos humanos.

3) Suporte tecnológico e operacional ao policiamento: não somente a tecnologia se mostra como elemento que favorece o policial a desempenhar com excelência seu serviço de proteção à sociedade. Além de hardwares e softwares que permitem a celeridade e a gestão do atendimento policial, e da modernização das centrais de operações, monitoramento e despacho de ocorrências, as polícias militares que contribuem com as menores taxas de mortes violentas intencionais também investem no suporte operacional propiciados pela melhoria de processos internos (atividade-meio) capazes de corporificar uma retaguarda técnica, logística e jurídica ao policial que opera na atividade-fim. Dentro do suporte operacional também se considera o auxílio prestado pelo serviço de inteligência, através da produção de conhecimento para a preservação da ordem pública, também de suma importância para a distribuição do efetivo. Da mesma forma, deve ser considerada a concessão de autonomia para determinadas unidades policiais militares destacadas realizarem o planejamento junto a outros órgãos públicos e mesmo com a iniciativa privada, com vistas à preservação da ordem pública em seus respectivos territórios, atendendo às diretrizes estratégicas das corporações, porém, com grande diminuição dos entraves burocráticos que caracterizam o formalismo das relações interinstitucionais.  

Enquanto São Paulo, Santa Catarina e outros estados onde o policiamento ostensivo se mostra bem estruturado souberam manter as estratégias acima apresentadas, os Estados que ainda não conseguem reduzir suas taxas criminais, mesmo tendo conseguido implementar algumas daquelas estratégias, ainda apresentam enormes dificuldades para mantê-las e seguir o planejamento anteriormente estabelecido, principalmente se o planejamento dessas estratégias fora concebido em gestões anteriores, quando então se opta pela quebra de continuidade por razões puramente políticas ou pessoais, sem que se perceba o prejuízo a médio e longo prazo ocasionado por essa descontinuidade.

Por óbvio, há razões peculiares que contribuem para a dificuldade de se reduzir a taxa de mortes violentas intencionais nos Estados Amazônicos, não podendo ser desconsiderado o desguarnecimento das fronteiras por parte do governo federal, circunstância que permite o aumento dos tentáculos das organizações criminosas nesses Estados. São justamente os resultados letais das disputas por rotas e territórios dessas organizações criminosas os principais propulsores dos elevados índices de mortes violentas intencionais na região Norte.

Apesar da nova lei orgânica nacional das Polícias Militares (Lei nº 14.751/23) em seu art. 4º, inciso IV, definir indicadores para o planejamento e distribuição do efetivo de forma proporcional ao “número de habitantes da circunscrição, obedecidos indicadores, peculiaridades e critérios técnicos regionais”, há a necessidade de que as leis estaduais instrumentalizem os critérios para essa distribuição. Até o presente momento, os Estado têm adotado critérios próprios (e muitas vezes nada técnicos) para a definição do número de policiais em suas localidades, repetindo fórmulas antigas e contraproducentes de minimização do crime e da violência na sociedade.

Espera-se, portanto, que as polícias militares saibam adotar e viabilizar o conjunto de regras para se estabelecer unidades e distribuir efetivos, considerando área, população, incidência criminal, população flutuante, trânsito, desenvolvimento urbano, entre outros fatores críticos, recorrendo-se de forma adequada às ciências policiais para que a estruturação do emprego policial, responsável pela segurança e defesa do cidadão, seja cada vez menos afetada pelos interesses políticos e pessoais.

*Coronel da ativa da Polícia Militar de Roraima

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